O rádio tocava no fundo do bar uma música rançosa enquanto Ricardo tomava, da já acabada garrafa, a última dose, debruçado sob o balcão. Vicente já o havia perguntado por que voltava a beber depois de tantos anos sem precisar daquilo. Ele o mandou calar a boca e servir. Habituado já a esse tipo de tratamento em seu bar, torceu o nariz e fez o que sua profissão mandava.
Já tarde da noite – Noêmia preocupada em casa –, estava ali, servindo-se com moscas que zumbiam e estalavam no vidro da estufa quebrada. Já não raciocinava direito. Sua vida estava em espiral, soltando palavras desconexas na cara dele, que balançava a cabeça feito lagartixa.
– Não entendo isso. Tive uma promoção, Vicente. Noêmia parou de trabalhar, só está pegando grã-fina agora. E agora, Vicente? Como vai ser, Vicente?
Seus olhos marejavam, começou a soluçar de angústia. Vicente sabia que acontecera algo com seu amigo, que há tantos anos dividia com ele aquele bairro calmo, tranquilo. Só não sabia o que era. E não importava naquele momento procurar saber. Ele se compadeceu pelo Ricardo, limpando as mãos sujas de gordura no pano de prato sempre recolhido no ombro.
– Ricardo, ô Ricardo! A mãe tá preocupada. Vamos pra casa.
Era Augusto, seu filho mais velho, aparecendo na entrada do bar.
Darlan Lula é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Escritor, autor de cinco livros, entre prosa e poesia. www.darlanlula.com.br
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