Houve um tempo em que a vida passava devagar. Fosse ao norte do Paraná, com sua terra avermelhada, ou na mais pacata fazenda do Tenessee. Quando penso nisso, quase escuto a bola de feno que caminha com calmaria nas estradinhas marcadas pela ferradura dos cavalos.
Mas… Esse tempo se foi. Hoje, é na base da pressa mesmo.
Passa o café, coloca na garrafa térmica, corre para não perder o ônibus, põe os fones de ouvido e pensa no tanto que há para fazer no trabalho. Volta pra casa, tira os sapatos e se joga no sofá para descansar. Não, espera… A mente nunca para. Já lembra que o feijão precisa descer do freezer para descongelar e que calça do uniforme rasgou e precisa costurar.
Enfim chega o sagrado fim de semana, respiremos. Só que logo ali, no Domingo, o peito aperta ao lembrar que na manhã seguinte recomeça a corrida dos ratos.
Até que o final da década chega e junto com ela, um vírus desconhecido e uma pandemia pra te fazer parar, perder, sofrer e o mais precioso: Ter tempo.
O relato a seguir é de uma pessoa que desabafou comigo e pediu a preservação de sua identidade. Transformei em história e sinto que irá sacolejar muita gente… Vem, é por aqui:
“Quase todo fim de tarde, quando o céu se pinta em aquarela, eu me pergunto: ‘Que foi que eu pedi dia 31 de Dezembro de 2019, quando o relógio bateu 00h?’
Te juro que tento lembrar pra ver se encontro alguma fala ou frase que talvez tenha sido mal interpretada pelos organizadores de 2020. E é assim que estou vivendo esse isolamento social: com xícaras cheias de bom humor e aroma de alecrim pela casa. Inclusive, te deixo essa sugestão: pega um raminho de alecrim e queima; depois, espalha pela casa, pois isso afasta todas as más energias e impurezas espirituais de nosso lugar. Prática de vilarejos milenares mundo afora, recomendo.
Também venho saboreando a vida pela janela. É ali, na calma e no caos, que a gente entende a vida e chega até parecer poesia; mas é verdade. De manhã cedo, o sol invade nossas casas e abrimos a janela para que ele entre e irradie. Mais tarde, vejo a senhora que mora em frente preparar uma xícara de chá que chego a ver a fumacinha saindo – e me pergunto qual será o sabor escolhido. Mais ao lado, um senhor que está concentradíssimo trabalhando de casa desde abril. Sei disso porque ele senta em frente ao computador pela manhã e sai só à tarde; acredito que ele tenha terminado, pois agora não existe mais um computador sobre a mesa e sim um vaso de orquídeas que espalham graça e beleza para meus olhos.
Passa o ônibus do bairro, o senhor que vende ovos frescos e o tão familiar apito do afiador de facas (quem lembra?).
Pela janela, eu vejo se o céu será de azul infinito ou de chuva necessária para a terra. Aviões de passageiros, ah… Esses passam poucos, mas os cargueiros é todo fim de noite, um evento com todo seu majestoso tamanho e luzes piscando. Dia desses, teve até carro de mensagem daqueles que faziam a gente correr sem nunca mais olhar pra trás na década de 1990. Cantamos parabéns e vibramos junto com a nossa vizinha… Que nunca tínhamos visto.
Quando minhas pálpebras começam a pesar e a melatonina se ativa, deito um pouco e vejo o céu corajosamente estrelado e me mostra o quão pequenos somos. Esse sentimento me traz medo, um vazio. Mas também uma coragem e potência que só quem é humano entende (não estou escrevendo para alienígenas, licença poética por favor…).
Da janela eu vejo as pessoas, as árvores nuas de inverno, a chuva, a vida.
Eu sou grata por ter uma janela para onde olhar. Por onde olhar. Mas quero muito poder voltar para as janelas da alma: os olhos das pessoas.
Com riso frouxo, sem máscaras; sem medo e com humanidade. Estamos tateando na incerteza, e espero que a gente saia melhor do que entramos porque o ser humano é bicho triste: só aprende na dor.
Enquanto isso, abre tua cortina e contempla seja qual for a vista. Seguimos!”
Histórias, memórias e sensações são os que nos conectam, independente do ponto de partida, classe social e demais lugares de fala. Por isso, tenho um projeto que foi conhecer o mundo virtual esse ano, que se chama Caçadora de Histórias, e ele acontece no Instagram.
Quer saber como funciona? Te conto: Escolhe alguma história que queira partilhar e envia para o e-mail tuahistoriaaqui@gmail.com.
A partir disso, escrevo-a com minhas próprias palavras te ajudando a ter um novo olhar sobre tu mesma (o). É um processo de cura das feridas, terapêutico e libertador para ambas as partes.
Victória Vieira é escritora e idealizadora do projeto Caçadora de Histórias. Caçando e ouvindo histórias, vou escrevendo a tua com minhas palavras e te ajudando a ter um novo olhar sobre ela. Siga o projeto no Instagram.
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