Vejam como as memórias são interessantes. Esta poderia ser apenas uma imagem de natureza para ser contemplada; mas a pesquisa histórica possibilita acessar as diversas camadas do tempo sobrepostas a uma imagem aparentemente banal. Nesse lugar, hoje tomado de mato e com uma frondosa e bela árvore antiga ao lado, havia uma casa onde moraram meus avós paternos, meu pai, meu tio Sebastião e minhas tias. Uma moradia de empregados localizada numa fazenda perto do sítio que minha mãe herdou de suas tias-avós. Tratava-se de uma casa de veraneio construída para… os patrões que iam passar temporadas na roça, a procura do ameno clima da região.
No entanto, essa pomposa casa, de madeira, vidraças e circundada por uma confortável varanda, acabou sendo posteriormente preterida pelos proprietários, que resolveram mudar a sede para outro ponto da fazenda. Assim, justificava-se a moradia daquela família de pobres e de dependentes para aquele lugar. Nas memórias de infância do meu meu pai e das minhas tias, ficaram eternizadas as lembranças desse período que eu poderia chamar de “áureo” (como o nome do médico que a comprou, o Dr. Áureo). Tanto assim o foi que, ao ser demolida para dar lugar a um casebre que, depois de muitos anos, também foi demolido, faziam questão de contrapor esta àquela: “mas a nossa casa não era essa; era uma casa muito mais bonita e charmosa!”.
A pedra semi-enterrada, escondida no meio do mato, que podemos observar na foto, pode parecer que “sempre esteve ali”. Mas não. Em certo dia de chuva torrencial, a água a fez rolar do pico do morro localizado em frente à casa. A cena, que durou segundos, eternizou-se por anos e anos na memória dos moradores. Minha tia se lembra de todos apreensivos dentro de casa, vendo aquela pedra rolar, em alta velocidade e pressão, praticamente raspando a parede lateral da edificação. A tragédia, que imaginavam ser imensa, felizmente, não passou de pequenos danos, de segundos de aflição que foram suficientes para se perpetuarem em suas memórias.
Enfim, a pedra rolou, os moradores sobreviveram, mudaram-se dali, a casa se esvaiu com o tempo, um casebre foi construído no mesmo local, que, por sua vez, também foi demolido. Entretanto, a pedra continua no mesmo lugar, ali pertinho da árvore frondosa que a reverencia. Interessante, não é? Mas esse episódio não seria hoje reabilitado, se, décadas depois, a memória não se tornasse, para mim, objeto da história. Caso contrário, essa imagem não continuaria tendo o significado simbólico que continua tendo para a nossa família. Com toda a sua beleza e importância, a pedra continuaria sendo simples pedra, a árvore sendo simples árvore e o terreno, esvaziado da presença humana – percepção certamente compartilhada por todos aqueles que por ali passam hoje, com exceção dos que ali moraram. Tudo muito lindo e importante do ponto de vista ecológico, mas vazio de histórias e narrativas que desvelam a interação do ser humano com o espaço que o circunda.
Sérgio Augusto Vicente é bacharel, licenciado, mestre e doutorando em História pela UFJF. Dedica-se ao estudo da história social da cultura no Brasil, abrangendo temas como trajetórias individuais e de grupos, sociabilidades, associativismo, história intelectual, história social da literatura, acervos documental e bibliográfico, patrimônio cultural, memória e educação. Professor de História e historiador. Atualmente, trabalha no Museu Mariano Procópio (Juiz de Fora – MG).
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