Apesar da confusão que me acompanhava todos os dias e por todas as horas, o mundo tinha adquirido outra tonalidade. Os sentidos ficaram aguçados; as músicas eram mais bonitas; as cores, mais perceptíveis; as texturas, mais tocantes.
Eu estava mais sensível a tudo ao meu redor.
Eu estava observando um mundo que nunca antes fora admirado de dentro daquela caixa fechada que eu vivia. Agora, estava de fora, em outra perspectiva, enxergando tudo aquilo que aparecia a minha visão.
Ana e eu não tocamos mais no assunto, e as meninas que agrupavam conosco não perceberam nada de diferente.
Os dias passavam, mas eu ainda queria gritar aos ventos todos aqueles sentimentos dentro de mim – principalmente os que haviam surgido em relação a ela.
Quanto à minha primeira vez sexualmente falando, eu estava esperando por ela; então, essa novidade não foi algo que movimentou minhas estruturas de uma forma anormal. Claro, fortaleceu minha nova forma de me entender perante uma sociedade sexual e perante meu próprio corpo descobridor dos prazeres carnais; mas, era algo – na falta de termo melhor – rotineiro.
O que me confundia era ter esses desejos por homens – na vontade, sim, de descobrir outros corpos masculinos para além daquele primeiro e de entender todo o funcionamento da vida entre quatro paredes – e, simultaneamente, a lembrança do beijo, frenética como as batidas de meu coração, tocando as memórias em ritmo carnavalesco e sem ser chamada para vir à tona.
Eu tinha escutado por aí que, às vezes, isso era apenas uma “fase”.
Quem nunca ouviu isso? “Uma fase”.
“Ah, é apenas uma fase, você vai ver, logo passa”.
A lua tem fases. Jogos de videogame têm fases. Programas televisivos tem fases. Bandas tem fases. Diretores de filmes tem fases.
As pessoas também têm fases, pois, eu mesma já fui tantas pessoas dentro de um só corpo que se dividiram em anos, tempos que melhor lhe aprouveram até chegar a ser a atual eu.
Mas, ouvir dizer que sexualidade tem fase é algo que nunca entrou por meus ouvidos de bom grado.
Entendo que existem pessoas que sim, têm atrações e vontades, das quais querem vivenciar as situações e se perceber perante as mesmas, e, quando concluem, enxergam que não era de fato o que lhes preenchia.
Têm pessoas que guardam para si como o segredo mais secreto e jamais experienciam as coisas por algum medo e, essa tentativa de sair da zona de conforto se estagna.
E existem pessoas que se jogam como se pulassem de uma ponte para fazer aquele esporte radical para abraçar tudo o que lhes é ofertado, descobrem o que tem afinco e o que não lhes cabe, até se entenderem como um todo.
Mas, usar a palavra “fase” desmerece toda e qualquer situação nesse aspecto.
Pode ser passageiro, mas é para ser vivido. Pode não ser eterno, mas é para ser experimentado.
Eu não sabia o que era para ser, só sabia que queria algo maior do que eu mesma e necessitava fazê-lo caber dentro do meu peito que explodia de vontades de narrar ao mundo o que jorrava na fonte de minhas experiências.
E, para compreender da melhor forma possível, eu precisava viver.
– Oi, Mauricio, posso ir contigo? – Perguntei a o rapaz alto e forte que fazia o mesmo percurso para casa após o colégio, e que coincidia de ser o meu, quando já havia me despedido de Ana em seu ponto de ônibus.
Timidamente eu iniciei a conversa com ele, que era gay assumido, e a única possibilidade que apareceu na minha cabeça de ter alguma experiência verbal com alguém que fosse do “meio”.
Nós nos conhecíamos de vista, da escola. Nos cumprimentávamos e trocávamos algumas palavras, mas nunca fomos apresentados ou próximos. Na ingênua mente que eu tinha, por ele ser gay, achava que, tecnicamente ele teria amigos gays e poderia me levar para um outro mundo, diferente do que eu estava acostumada.
Mas éramos todos adolescentes sem empregos, com pouco dinheiro no bolso e nenhum ambiente que nos abraçasse para que pudéssemos libertar nossas feras. Somente anos mais tarde, já resolvida comigo, encontrei a possibilidade de frequentar tais locais.
Com a frequência de ter a companhia de Maurício, ficamos verdadeiramente amigos. E sendo a amizade uma troca de confidências e de confiança contei a ele tudo o que tinha acontecido.
O desejo repentino por aquela mulher que me despertou, o beijo com Ana, a confusão da minha mente em estar também desejando homens após ter tido meu primeiro contato sexual.
– Olha, repentino não foi. – Íamos a pé, sem pressa de chegar, só nós dois, e ele sempre muito atento e atencioso a tudo o que eu dizia. – Minha irmã é lésbica, sabe? E ela é mais velha também, então tem mais experiência que a gente. Ela diz que a gente já nasce com isso, mas cada um tem um tempo diferente pra descobrir.
Então eu havia nascido com aquele lado que gostava também de mulheres, e ele resolvera aparecer por ali?
– Aí tem gente que gosta, tem gente que não gosta, tem gente que gosta e finge que não… – Ele continuou. – Eu acho que, assim, você não tem que escolher se você gosta de homem ou gosta de mulher. Não tem que escolher e ficar só com um. Acho que tá tudo bem você gostar dos dois.
– Mas não é estranho? – A sigla, naquela época, era GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes), então, compreender a ambiguidade dos meus sentimentos sem o amparo da bissexualidade era realmente muito complicado e fazia eu parecer uma extraterrestre.
– E o que na vida não é estranho? Eu sou estranho porque sou gay. E aí?
Maurício foi uma das primeiras pessoas que conheci que se sentiam confortáveis para falar abertamente sem receios do que as pessoas pensariam.
– Então eu também sou estranha.
— Somos estranhos! Bate aqui! – Ele abriu a mão para que eu batesse na dele com a minha. – E a Ana, não falou mais nada mesmo?
– Não, é como se nada tivesse acontecido entre a gente. – Eu estava passando pela ausência de ser percebida por ela enquanto pessoa que tinha sido beijada por ela.
– Deixa estar. Pra ela é algo mais normal. Mesmo que ela não fique com meninas, ela entende com mais facilidade do que você. Mas, eu tenho algo pra te falar: tem uma conhecida minha que se interessou por você, e queria te conhecer.
A internet era devagar, os computadores com aquelas telas grandes e longas e manter as redes sociais atualizadas as poucas que existiam era tarefa para quem possuía ambas as tecnologias em casa.
Com a descoberta da menina, entendi como a oportunidade essencial para levar adiante a minha nova jornada, e, tirar a prova de se, de fato, eu gostava mesmo de beijar garotas.
Celulares mandavam apenas mensagens de texto e somente se houvesse crédito para tal; então, com a ida até uma Lan House (que era um luxo para poucas horas de utilização ao mês, afinal, pagar para se divertir fora de casa assim não saia barato) conversei com a dita e combinamos de nos encontrar um dia.
Eu sempre fui impaciente então, tudo o que exigia encontros era com a maior rapidez possível, pois, esperar, nunca foi qualidade minha.
Era um dia chuvoso, frio e bem acinzentado.
Quando ela vinha se aproximando, lá de longe, percebi que não era tão semelhante às fotos que havia disponibilizado – o que costuma ser comum, principalmente hoje em dia, na era do universo virtual e possibilidades de edições digitais que alteram totalmente a realidade.
Claramente por uma mistura de medo da situação por estar receosa de ter marcado um encontro com uma pessoa desconhecida e assim, “testar” minhas confirmações e pela diferença que havia me incomodado, eu não senti interesse imediato por ela.
Eu esperava que, quando acontecesse, seria algo que novamente despertasse borboletas no estômago e demonstrasse que sim, eu realmente gostava de meninas, mas, diante de tudo, nada aconteceu.
Adentramos o jardim de um prédio – grades eram coisas raras naquela época, principalmente em bairros apenas residenciais como o que selecionamos para o momento – e ficamos por lá, nos escondendo da tempestade e das pessoas, debaixo da minha sombrinha.
Muito de mim também tinha receio de ser vista na companhia de outra menina e de compreenderem o que estávamos fazendo. Era uma vergonha ter esse tipo de pensamento, mas era inevitável para quem eu era.
E era tudo novo.
A pessoa que sou hoje, assumida e sem preocupações com o que os outros vão achar a meu respeito, lamenta ter quisto se esconder para se sentir menos vulnerável mediante julgamentos.
A pessoa que sou hoje, que se atrai por pessoas independente de gênero, lamenta ter sido preconceituosa e escolhido um canto do jardim afastado, porque a menina era diferente de mim – usava roupas masculinas e tinha um jeito mais masculino -, por vergonha; por achar erroneamente que mulher precisava ser feminina e se vestir como mulher.
Mas, o que é ser e se vestir como mulher? O que é ser mulher?
Ser mulher não é usar roupas floridas, salto ou vestido. Ser mulher é algo que se torna, em caráter – assim como ser homem -, e roupas, genitais, cabelos, voz, jeitos e trejeitos não limitam a nada: vestimentas não possuem gênero. Ser mulher é muito mais do que eu imaginava que era e realmente, se torna mulher, não se nasce como uma.
Ela era educada, tinha um bom papo e ficamos conversando por um bom período de tempo até o beijo acontecer.
Ela não sabia que seria apenas meu segundo beijo com uma menina; ela não sabia que eu estava com curiosidade em saber se eu de fato gostaria. Ela não sabia que eu estava apreensiva em fugir de estereótipos que a sociedade tinha colocado na minha cabeça dos quais eu deveria me encaixar. Ela não sabia que eu a tinha colocado em um estereótipo errado e errôneo e só anos depois corrigiria essa postura.
E ela também não sabia que foi realmente a confirmação de que eu precisava, porém, eu queria mais, ter mais certeza ainda sobre meu caminho: eu queria transar com uma menina.
Barbara Pippa é nascida em Juiz de Fora, participante em antologias de poemas e contos. Acredita em astrologia e muda o cabelo de acordo com o humor.
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