Sentou-se no sofá amparado pelo filho.
Noêmia estava de pijama, ar de cansada, cabelos revoltos. Encarou-o de frente, de pé, suspendendo o seu queixo e fazendo-o encará-la também.
– O que houve, Ricardo? Você não pode voltar a fazer isso comigo! Pelo amor de Deus, homem. Pense nas crianças! Você ficou doido?
Ele não conseguia encará-la, desviando o olhar, indo parar sobre a Santa Ceia colada na parede da sala. Augusto também o encarava com olhos piedosos e, ao mesmo tempo, risonhos, lembrando-se de tantas vezes que chegara a casa tarde da noite e sofria com as ameaças do pai – era bom sentir o efeito inverso, a figura paterna jogada no canto do sofá da sala.
Noêmia não acreditava no que acontecia. Tentava fazer Ricardo falar a qualquer custo; mas, naquele momento, ele encarava Jesus na parede, rodeado de seus apóstolos e dizendo para todos: “Alguém aqui comprometerá a sua família!”, e lembrava-se do Sr. Miranda. Ele era um apóstolo despejado, despedido, despreparado. Um Judas contemporâneo, cuja vida permanecia suspensa naquele momento, como as lágrimas nos cílios inferiores de seu olho.
Naquele exato momento, Noêmia percebeu a gravidade da situação para além de uma mera embriaguez. Lembrou-se das falas premonitórias de seu marido àquela manhã, dizendo que aquele não era um bom-dia. Sacudiu-o, para ver o que o homem lhe falava, porém as únicas cartas que embaralharam sua vida foram as lágrimas que se desprenderam dos cílios, indo parar no dorso de suas mãos.
Ricardo ajoelhou-se e despencou a chorar no colo de sua esposa, molhando o seu ventre e pedindo perdão a ela, que, sem saber o que fazer, atônita, pousou as mãos na cabeça do marido e se lembrou das agulhadas do passado como costureira.
Darlan Lula é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Escritor, autor de cinco livros, entre prosa e poesia. www.darlanlula.com.br
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