Antes de iniciarmos esse breve ensaio sobre os eventos ocorridos no dia 18 de Outubro de 2020 no Chile, cabe destacar que, em nossa pretensão, não há o desejo por uma opinião cristalizada – sobretudo por se tratar de um evento ainda em investigação. No entanto, gostaríamos de lançar novas reflexões e perguntas sobre a irradiação e absorção das notícias recebidas em território nacional em sintonia com o contexto político brasileiro (já imerso numa onda conservadora) que, desde o discurso público levado a cabo pelo atual presidente na abertura da 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas no dia 22 de setembro de 2020, tem como narrativa a cristofobia como um dos males ideológicos que inviabilizam a governabilidade plena do mesmo presidente.
“Por que as igrejas cristãs são alvos de ataques da extrema-esquerda?”
“Igrejas são incendiadas em atos que marcaram 1 ano de protestos no Chile”
“No Chile, extrema esquerda ateia fogo a igrejas”
Esses foram alguns títulos encontrados nas matérias da imprensa nacional que apresentavam o acontecimento do dia 18 de Outubro no Chile. Percebe-se, numa análise superficial, que a diferença de abordagem no título carrega o evento com novo tom, atribuindo um significado. Essa estratégia é recorrente para a captura de leitores específicos, com valores e ideias também específicas.
O incêndio de duas Igrejas no Chile (Paróquia Asunción e capela San Francisco de Borja) ocorreu em meio a uma onda de manifestações que está sendo caracterizada como uma ação continuada do ano de 2019, quando a reivindicação pelo preço do transporte se ampliou desembocando em pautas sociais que iam de frente à própria Constituição vinda dos tempos do General Augusto Pinochet, datada de 1980. Com inspiração neoliberal, essa mesma Constituição precisou sofrer, segundo a pesquisadora e professora do departamento de História da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) Hevelly Ferreira Acruche, “uma série de emendas para se “adequar” ao Estado democrático de direito estabelecido a partir de 1990″. Ainda sim, não se encontrava nela a garantia de direitos essenciais relacionados a questões básicas como saúde, educação e previdência. Somado a isso, a pandemia do COVID-19 acentuou as desigualdades mantidas sob manutenção pela própria lei maior e suprema do Estado.
A partir desta exposição, precisamos de algumas perguntas que nos guiem a uma reflexão mais ampla: Quem é o responsável pelo incêndio? Qual o significado desse evento?
Segundo a investigação de um jornal local [1], descobriu-se a participação de um policial infiltrado nas manifestações; e, segundo o perfil de @sabrinanaquino, fotógrafa residente no Chile, essa prática seria comum, se estendendo para a participação de, até mesmo, políticos de direita infiltrados nas ações dos grupos manifestantes. Assim sendo, cabe a pergunta mais clássica: por quê?
Após a circulação de algumas notícias nacionais prematuras indicando a responsabilidade do incêndio, no dia 19 de Outubro um membro da Marinha foi detido por ter participado do acontecimento relativo a capela San Francisco de Borja, também conhecida como a Igreja dos Carabineiros, que foi assumida pela capelania militar em 1973. A Marinha lançou uma nota de repúdio à participação de um oficial neste ataque, ressaltando que o mesmo não estava sob ordens das forças armadas e que havia agido por conta própria [2]. Quando detido, o oficial teve como penalização a obrigatoriedade de fazer assinaturas na delegacia 2 vezes por mês.
Ouvido pelo Coletivo Bereia [3], Juan Bacigalupo, sanitarista chileno e pesquisador na Universidade Federal da Integração Latino Americana (Unila), indicou que a promoção dos incêndios seria uma tentativa de “criminalizar o movimento social, porque o povo chileno ainda é muito cristão”. O pesquisador assim opinou tendo em vista que a Igreja dos Carabineiros possui intensa presença militar em seu entorno – o que tornaria muito mais difícil uma invasão por parte dos manifestantes – e o fato de que não foram encontradas imagens dos culpados.
Destacamos, também, que o incêndio ocorreu às vésperas do plebiscito para reforma Constitucional, que foi votado no dia 26 de Outubro de 2020. Convidada pela Trama, a historiadora Dra. Hevelly Acruche diz que “a elaboração de uma nova Constituição no Chile é um passo significativo de defesa da democracia num país que viveu uma das mais sangrentas ditaduras do cone Sul. (…) As lutas populares que tomaram conta das mídias em 2019 foram fundamentais a esse processo e a conscientização popular. A população chilena enfrenta hoje a inseguridade social e a falta de um Estado presente nos serviços básicos graças às privatizações de recursos como água e luz, a crescente precarização educacional e um sistema previdenciário que deixa a população idosa sem condições mínimas de sobrevivência. Numa das maiores participações populares em pleitos, o referendo de 25 de outubro de 2020 deu esperança a muitos pela defesa do Estado de bem-estar social contra o neoliberalismo. No próximo ano, os trabalhos serão realizados por uma Assembleia Constituinte plural, formada por diversos segmentos sociais e étnicos do país. Em meio a uma série de retrocessos que assistimos diariamente, ver os casos do Chile e da Bolívia são um alento para os que acreditam na justiça social e numa reescrita do passado latino-americano”, concluiu.
No que diz respeito ao incêndio da Paróquia de Asunción, há rumores sobre o espaço ter servido como palco de torturas durante a sangrenta ditadura de Pinochet (1973-1990) – o que foi verificado pelo mesmo Coletivo já citado mediante o trabalho do investigador Dr. José Santos Herceg no documentário “Lugares desaparecidos – rastros dos centros de tortura e extermínio em Santiago”. O local, similarmente identificado por “Vicuña Mackenna No 69, foi também uma base de computação central do Centro Nacional de Informações (CNI) comandada pelo General Odlanier Mena, que reunia arquivos de vítimas perseguidas pelo regime e comandava operações de inteligência para destruir oponentes. Não há, entretanto, confirmação de que a ligação com a ditadura seja a motivação dos manifestantes para causar o incêndio, uma vez que não foram identificados suspeitos.” [4]
A exposição feita até agora demonstra que o ato foi cercado de inúmeras variáveis que não se fecham em uma conclusão específica, mas que abrem precedentes para novas perguntas. Não tendo como pretensão ainda, a neutralidade, afirmamos, categoricamente, que as manifestações chilenas que tiveram início em 2019 são legítimas e que, em sua maioria, os manifestantes optaram por uma expressão pacífica e uníssona em suas palavras de ordem. Como cristã e historiadora, prezo pela justiça social e o embargo das desigualdades, bem como pela reivindicação desses pela via da pacificidade; no entanto, saliento que pacificidade não caracteriza um estado de inércia frente às injustiças – pelo contrário, diz de uma estratégia de luta.
A partir das considerações levantadas, é necessário uma sofisticação das nossas opiniões (ainda que sejam divergentes). Falar sobre cristofobia em uma situação como essa pressupõe a existência de um repúdio e ódio à religião cristã e, nos veículos de imprensa nacional conservadores, atribuiu-se esse ataque a um suposto ódio inerente que a esquerda teria pelos cristãos.
Por cristofobia, entende-se que “se refere à aversão ou ridicularização pública de uma pessoa, em razão da sua fé em Jesus Cristo”, segundo o Padre Rafhael Maciel (sacerdote eleito pelo papa como Missionário da Misericórdia); com o conceito atualizado, podemos analisar segundo uma baliza mais fiel, e não segundo aos significados atribuídos ao conceito desde a sua circulação mais intensa no âmbito nacional.
Como o que ocorreu no Chile ainda está sob investigação, precisaremos trabalhar com situações hipotéticas para desenvolver a nossa análise. Dito isso, não podemos falar em cristofobia por alguns motivos. O primeiro é: se a igreja tivesse efetivamente sido queimada por manifestantes, o que os teria motivado? O fato de ali ter sido palco de torturas em um regime ditatorial ou o fato de ali ser propagado uma religião? Quando esse tipo de prédio é posto em chamas, o símbolo que quer ser criado é o de afastamento ao que era usado para os subjugar; dessa forma, não se tem por pretensão a perseguição por ódio e/ou intolerância ao cristianismo, mas a tortura que ali ocorria. Portanto, é necessário que se faça, aos meus irmãos que acreditam nesse evento enquanto um exemplo de cristofobia, a seguinte pontuação: se o espaço da comunhão foi, em sua história, utilizado como um local onde se cometia atrocidades contra a vida humana, existe um vácuo da ética cristã, que preza pela vida e vida em abundância. Esvaziado de sentido, se torna apenas um prédio, uma estrutura que abdicou do seu compromisso social; portanto, afastada das demandas daqueles que dela precisariam. Para compreendermos isso, precisaríamos nos questionar algo muito simples: qual é a memória à qual aquele lugar remete? Seria um lugar esperança e reconciliação com o Criador? Ou um espaço onde pessoas foram feridas e violadas em muitos sentidos?
Sobre a capela de San Francisco de Borja, pisamos em um terreno ainda mais instável, pois se trata de um espaço com significado e acesso que se concentra em um grupo – a saber, os militares, que são apontados por muitos como indivíduos que se infiltram nas manifestações e nos atos para incitarem a violência e desordem, caracterizando posteriormente, os membros dessas organizações como vândalos. Esse tipo de movimentação seria feito para beneficiar as estruturas tradicionais com o apoio popular; ou seja, responsabilizando os manifestantes, haveria um repúdio da maioria, o que desviaria o foco das reivindicações para a descrição de apenas um clima de terror, desordem e intolerância, que seriam característicos desse grupo que pedia mudança. Seria, portanto, a tentativa da criação de um perfil do manifestante.
As notícias produzidas por veículos de imprensa mais conservadores, como já citado, atribuíram à esquerda esse tipo de violência associada ao conceito de cristofobia. Em contexto nacional, tal conceito tem sido instrumentalizado como uma justificativa das constantes críticas que são feitas ao atual governo – ou seja, o posicionamento contrário as posturas e medidas governamentais (simbólicas ou não) estão sendo lidas como um repúdio a fé cristã -, que deveras é utilizada como escudo para usos e abusos do chefe de Estado, que o faz mantendo como prerrogativa a defesa de valores que seriam característicos do cristianismo. A partir disso, novas questões devem ser levantadas: Há simetria com o que, de fato, a bíblia comissiona os seguidores de Jesus a fazer? O órfão, a viúva, os estrangeiros e, em linhas gerais, os grupos à margem estão recebendo assistência? Há políticas públicas para o combate as injustiças ou os direitos humanos continuam a ser violados? – ao fim e ao cabo, pergunto: as pontes, nesse meio tempo, foram ampliadas, ou será que são os muros que estão sendo (ainda mais) levantados?
A partir desta reflexão, gostaria de caminhar para o fim dizendo que: a falsa simetria, tem sido um dos males da informação. Veja, duas igrejas foram, de fato, queimadas; no entanto, a forma como lemos esse evento não pode tender para uma opinião infundada do que pensamos ser cristofobia ou esquerda. Uma das formas que nos ajuda a fugir de uma análise tendenciosa é a sofisticação do raciocínio, que vem a partir de alguns questionamentos: observar o tipo de veículo onde se lê a informação, quem o escreve, a qualidade desse veículo, compará-lo a outros e, sempre que possível, pesquisar sobre o contexto dos lugares abordados pela matéria. A falsa simetria produz intolerância política, bem como colabora para que conjecturas, opiniões e distorções da realidade continuem a ocupar lugar de fato, de notícia. É necessário a quebra desse ciclo! Comece, portanto, não aceitando tudo o que chega até você como uma verdade inquestionável.
Afirmamos o nosso compromisso com a defesa dos direitos inalienáveis a todo ser humano; neste caso, a liberdade de expressão, liberdade de culto e de crença. Para o combate a intolerância em todos as suas camadas e significações, é necessário pontuar o que esse mal, de fato, é.
PARA REFLETIR:
Alguns dados colhidos em uma rede social:
Pergunta: A queima de Igrejas no Chile foi cristofobia?
TOTAL | JUSTIFICATIVA | |
“SIM” | 40 | – |
“NÃO” | 30 | 4 |
JUSTIFICATIVAS:
Quem marcou “não”:
– “A instituição igreja tem mais a ver com o estado que com Cristo.”
– “Foi vandalismo apenas, uma forma errônea de manifestar indignação com a atual Constituição”
– “Porque é igual racismo reverso! Não existe.”
– “A Igreja Católica no Chile não apenas compactou com Pinochet como se envolveu em diversos escândalos de pedofilia nos últimos anos, tanto que tentaram fazer uma espécie de reforma no país para que isso fosse encerrado, mas a memória de um povo em relação aos acontecimentos, principalmente os chilenos, não é algo que se apague e que vá ser deixado de lado até que apaguem, mesmo que literalmente, quem cometeu os atos…”
Quem marcou “sim” não enviou justificativa.
*Esse ensaio foi escrito no dia 26/10/2020. Até o momento, não houveram atualizações na investigação.
BIBLIOGRAFIA PARA CONSULTA ONLINE
Gazeta do Povo: Por que as igrejas cristãs são alvos de ataques da extrema-esquerda?
CNN Brasil: Igrejas são incendiadas em atos que marcaram 1 ano de protestos no Chile
El País: Duas igrejas são incendiadas no primeiro aniversário das revoltas no Chile
[1] InfoBae: Un nuevo escándalo sacude a los Carabineros chilenos: descubrieron a un policía infiltrado en las protestas que alentaba la violencia
[2] Soy Chile: Defensa dijo que marino detenido por quema de iglesia no estaba infiltrado ni cumplía labores de inteligencia
[3] Coletivo Bereia: Incêndio de Igrejas no Chile não é caso de perseguição a cristãos
[4] LUCIANA, Petersen; JULIANA, Dias. Igreja incendiada foi local de tortura na ditadura?. In: Incêndio de Igrejas no Chile não é caso de perseguição a cristãos. [S. l.], 21 out. 2020. Disponível em: https://coletivobereia.com.br/incendio-de-igrejas-no-chile-nao-e-caso-de-perseguicao-a-cristaos/. Acesso em: 26 out. 2020.
Gyovana Machado é Cristã, graduanda em História pela UFJF e formada no Seminário Teológico Rhema Brasil.
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