Pelo direito de esquecer

Não é mistério: vivemos na era da informação, da tecnologia, dos virais, etc. A cada dia, o ser humano busca mais domínio sobre a maior quantidade de conteúdo possível, bem como os meios para armazenar tudo isso.

É realmente um interesse comum entre os indivíduos a preservação da memória em diferentes searas. Lembremos, por exemplo, dos antigos álbuns de família, das fitas VHS com os primeiros aniversários, ou os diários da adolescência. Mas vamos além: os livros de história, os museus, a memória coletiva de um povo ou um tempo específico; tudo isso sugere uma noção de permanência, pertencimento e perpetuidade.  

Entretanto, em contraponto a esse cenário de lembrança extrema, existem coisas que muitas vezes queríamos esquecer ou não tornar públicas. Em decorrência das inovações no mundo informacional, principalmente nas últimas décadas, tornou-se necessário um equilíbrio entre a informação e a inviolabilidade da vida privada.

Surgiu assim um verdadeiro direito fundamental, reflexo da própria dignidade da pessoa humana e garantia a outros direitos da personalidade, como a privacidade, anonimato, intimidade e imagem. É o chamado direito ao esquecimento, que tem como palco principal, na atualidade, a internet, em razão da facilidade com a qual as informações se propagam e se eternizam.

Esse direito, apesar de não constar no rol dos direitos fundamentais da Constituição, foi tratado na VI Jornada de Direito Civil, no Enunciado 531 que prega: “a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”. Assim, é uma verdadeira garantia de controle que o cidadão possui sobre seus dados, sobre informações de sua vida pregressa, e não só eventuais situações vexatórias ou ligadas à sua moral, mas também atitudes que seriam gloriosas e que deverão ser esquecidas em nome do desejo ao anonimato.

Vejamos a prática: é muito comum que sejam divulgados vídeos, fotos, ou postagens antigas que podem afetar negativamente a história ou a imagem de alguém. Além disso, alguma dificuldade financeira, uma infração penal praticada na adolescência, algum descuido um pouco ofensivo – tudo isso pode afetar imediatamente ou em longo prazo a concessão de créditos, a obtenção de empregos, ou até acarretar perigos de perseguição.

Mas como balancear o direito à liberdade de expressão com o direito à imagem e à privacidade? Torna-se evidente um conflito entre as liberdades constituídas e o dever de memória coletivo e suas técnicas de solução em razão da diversidade de valores trazidos em nossa Constituição Cidadã. A solução, apesar de não consolidada, parece perpassar pela análise do que é realmente de interesse público e não mero entretenimento, sensacionalismo ou linchamentos virtuais.

Um caso que ganhou notoriedade e muitos já devem conhecer é relativo à Chacina da Candelária. O crime, ocorrido na década de 90, teve a absolvição de um dos acusados; porém, anos depois, seu nome foi citado no programa “Linha Direta”, da Rede Globo, o que gerou um enorme burburinho. Além de muitos julgamentos sociais, o indivíduo sofreu vários outros prejuízos, mesmo depois de ter passado por um julgamento formal.

Ora, o absolvido foi até procurado para conceder entrevista, mas negou, e disse que não queria aparecer no programa, manifestando seu claro desejo se não reacender o caso. De todo modo, o programa foi ao ar em todo o Brasil, com conteúdo que revelava imagens e nomes reais dos envolvidos. Ele procurou a justiça e, após um longo período de tramitação e recursos, foi decidido que a liberdade de imprensa não pode ser assim absoluta. O direito ao esquecimento foi reconhecido como consequência da dignidade da pessoa humana, dando ensejo a uma indenização.

Outro caso que se tornou paradigma envolve um crime da década de 50. A jovem Aida Curi foi abusada, torturada e teve seu corpo arremessado de um prédio em Copacabana. Já na época, a imprensa foi criticada por expor, nas capas dos jornais, as imagens explícitas do crime brutal; e mesmo assim, em 2004, a TV Globo reconstituiu o episódio do crime. A família pediu indenização pela exploração da imagem da jovem, além de reafirmar a luta para esquecer a tragédia. ¹

Os aspectos em torno desse direito nos mostram a importância de nos protegermos de certos tipos de exposição, da disposição de nossos dados e também de desconfortos morais e psicológicos.

Não só estamos diante de um mecanismo de resistência ao poder de grandes corporações ou usuários maliciosos da internet, mas há também a relevância do direito a ser deixado só, ser deixado em paz, o chamado “right to be alone”.

Por vezes, não damos atenção ao fato de que o esquecimento também é importante para a construção da personalidade humana. Se analisarmos tanto a perspectiva individual quanto a coletiva, é possível entender que esse processo é inevitável e fundamental tanto para exercício do nosso livre arbítrio quanto para nosso desenvolvimento.

Para o professor de Oxford Mayer Schönberger, que leciona justamente sobre as virtudes do esquecimento na era digital, “esquecer possui papel central no processo de tomada de decisão humano, na medida em que nos permite agir no tempo, cientes de, mas não algemados por eventos do passado. Através da memória perfeita podemos perder uma capacidade humana fundamental – viver e agir com firmeza no presente”.

Por isso, deixamos a dica: use o passado como instrução, mas lembre-se de esquecer.

O esquecimento, frequentemente, é uma graça. 
Muito mais difícil que lembrar é esquecer! 
Fala-se de “boa memória”.
Não se fala de “bom esquecimento”, 
como se esquecimento fosse apenas memória fraca. 
Não é não. 
Esquecimento é perdão, o alisamento do passado, 
igual ao que as ondas do mar fazem 
com a areia da praia durante a noite. 
(Rubem Alves)

REFERÊNCIAS

¹ O processo constava na ata de julgamento para o final de setembro desse ano.

SAJ ADV. Direito ao esquecimento e dignidade da pessoa humana no STF. Publicado em 15/04/2020. Por Athena Bastos. Disponível em: <https://blog.sajadv.com.br/direito-ao-esquecimento/>.

SILVA, Felipe Rocha. O Direito ao esquecimento na internet. 2016. Disponível em: <http://repositorio.ufjf.br:8080/jspui/handle/ufjf/3227>. Acesso em: 21/10/2020.

UOL. STF julga hoje direito ao esquecimento no Brasil; o que está em jogo? Publicado em 30/09/2020. Por Rodrigo Trindade. Disponível em: <https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/09/30/stf-julga-direito-ao-esquecimento-caso-aida-curi-x-globo.htm>.

COSTA, Julia Braile. O direito ao esquecimento e a liberdade de expressão: a visão civil constitucional. 2017.


Déborah Silva é pós graduanda em Direito Constitucional. 


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8 Comentários

  1. Que questionamento necessário! As pessoas tem apresentado uma tendência, principalmente nessa era da viralidade e do cancelamento virtuais, a exercer seus direitos e liberdades sem as limitações que abrangem a dignidade do outro. Uma bela crítica ao egocentrismo e irresponsabilidade da internet!

  2. José Geraldo da Silva

    Tantas coisas eu gostaria de esquecer… E também que esquecessem.

  3. Otimo artigo Déborah! O tema é ótimo e o texto muito bem articulado. Meus parabéns!

  4. Que texto esclarecedor! Parabéns por, mais uma vez, falar sobre temas tão importantes e que nos estimulam a uma reflexão sobre a própria vivência! Muito obrigada!

  5. Parabéns pelo texto!!! Tema muito importante nos dias atuais

  6. Matheus Guelber

    Excelente texto sobre um dos temas mais atuais em nossa sociedade.

  7. Camila Rondan Fagundez

    Muito interessante a reflexão do texto. Acredito que há situações e situações, não é possivel pensar em esquecer vítimas do holoausto do que fotos de nudez de uma criança inocente vazadas na internet, por exemplo. O direito a esquecer para reformularmos quem somos tem muito a ver o direito à dignidade de pagar pelos nossos atos de forma respeituosa, como no caso dos presidios. Nos abre leque para muitas discussões.

  8. Raphael Gargiulo

    Como sempre, acertou em cheio.
    Temos que nos lembrar de esquecer, às vezes.

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