Ser assexual num corpo hiperssexualizado – Onde estão as vozes negras?

Glossário:
Assexualidade: uma das formas de manifestação da sexualidade
humana baseada na falta de atração sexual por outras pessoas;

Assexual (ou Ace): pessoa que se identifica enquanto assexual;

Alossexual: Pessoa que se encontra fora do espectro assexual;

Alonormatividade: opressão às identidades assexuais construída
sobre a noção de que a verdadeira atração romântica e a verdadeira
atração sexual sempre se expressam de forma conjunta;

Amatonormatividade: opressão criada a partir de suposições e
normalizações sobre sentimentos e práticas românticas, que corrobora
para a noção de que pessoas de diversas identidades – inclusive as
assexuais – sejam consideradas desviantes sociais.

Sou uma pessoa designada mulher ao nascer, negra e lésbica. Cada um desses grupos, de forma isolada, já é fetichizado pela sociedade. Os três juntos é como se fosse um combo de fetichização com o qual eu lido diariamente. E isso, com certeza, prejudicou o meu entendimento de mim mesma como assexual (ace). Eu era constantemente cobrada para ser altamente sexual, de despertar desejo, de fazer sexo… e eu não vejo a comunidade assexual debater sobre como a amatonormatividade afeta o psicológico das pessoas assexuais não brancas de uma forma diferente.

Veja bem, não estou dizendo que assexuais brancos não sofrem com a alonormatividade. Estou apenas dizendo que, quando imposta a corpos negros, ela se junta ao racismo, que hiperssexualiza nossos corpos. Isso precisa ser levado em conta.

A imagem que se tem de uma pessoa assexual costuma ser uma imagem branca. Parece que é absurdo pensar que uma pessoa negra ou não branca, em geral, não sentiria atração sexual. É como se a atração sexual fosse vista não só como algo intrínseco; a forma pela qual as pessoas tratam é como se o ser negro fosse dependente do ser alossexual para existir. Nossa comunidade, contudo, permanece em silêncio, sem levar esses debates muito para frente.

As comunidades LGBTQ+, em geral, são um reflexo da nossa sociedade. Por mais que nós tentemos criar a narrativa de que a comunidade é unida e de que ela funciona como uma espécie de sociedade paralela à cis-heteronormatividade, nós mesmos sabemos que não é assim (por isso, inclusive, minha escolha em me referir a comunidades LGBTQ+ no plural). Nossa sociedade é extremamente racista, e o mesmo se reflete em todas as comunidades LGBTQ+ – e, dentro da comunidade ace, podemos dizer que um desses reflexos é a falta de discussões sobre a vivência assexual (e arromântica, diga-se de passagem) negra e não branca. Então, a única forma de mudar esse cenário é repetir o que deve ser feito na sociedade: dar voz e espaço a pessoas negras para falarem de como o racismo se une à alonormatividade para reprimir e controlar nossos próprios corpos.

Antes de me entender assexual, eu não entendia porque não conseguia dar o esperado de mim socialmente. Eu sempre ouvi que seria uma pessoa que chamaria a atenção (dos homens), mas, por algum motivo, quando essa atenção me era dada, me causava extremo desconforto. A minha decisão lógica, enquanto pré-adolescente que não podia conversar sobre sexualidade – porque imagina uma menina falar disso? – foi começar a esconder meu próprio corpo. E eu odiava cada segundo daquilo. Eu odiava as calças muito frouxas, as blusas muito largas e os casacos, usados mesmo no verão quente do Rio, para esconder cada curva do meu corpo. Afinal, a culpa era minha mesmo. Era o MEU corpo que chamava atenção, não?

Depois que eu me reconheci enquanto pessoa assexual estrita, e posteriormente também lésbica, o desconforto com meu próprio corpo começou a passar; nesse processo, eu vi que eu poderia ver o meu corpo além dos olhos que o hiperssexualizavam. Eu poderia amar e até mesmo exibir o meu corpo sem que isso fosse necessariamente uma afirmação de que eu estava procurando investidas sexuais. Mas até esse processo, foram anos me odiando, desenvolvendo transtorno alimentar, usando roupas das quais eu não gostava, fingindo ser quem eu não era. Quantas pessoas negras assexuais podem estar passando por situações parecidas causadas por essa intersecção de racismo e alonormatividade nesse momento? Por qual motivo esses relatos e essas vozes não viralizam e ecoam? Onde estão as vozes assexuais negras?

Por fim, tudo que quero é deixar como reflexão para a comunidade assexual se a comunidade está sendo antirracista e protegendo pessoas negras verdadeiramente. É fácil postar uma hashtag falando que vidas negras importam olhando pra longe, sem olhar para aquelas vidas negras embaixo do seu nariz. 


Ariel Strauss é carioca, tem 22 anos e é estudante de Geografia na UFF. Se dedica a fazer divulgação científica da área e sobre estudos lésbicos no twitter (@urban_arie) e no instagram (@urban.arie).



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