Aquele sorriso decerto lembraria o outro, o primeiro.
Nenhum antes tinha sido de verdade. Não havia por quê. Infância pobre; desde a adolescência, subemprego, subsalário, submissão; só sobrou uma espécie de rancor. Que não era míope, mas esclarecido. Pulsavam então duas certezas: a dureza da vida e o único jeito de lidar com isso – ser mais duro ainda.
Apenas naquele certo dia, há alguns meses, uma coisa diferente tinha acontecido.
Sozinhos em casa, ele e a filha. A menina com quatro anos de festa e fôlego que sempre hipnotizavam a todos à volta. Falava, pulava, corria, e todos riam. À toa. Uma enxurrada de contas chegando, e as pessoas rindo; a ignorância guiando a caravana de tudo quanto é miséria, e as pessoas rindo. Não fazia sentido, irritava. Mas todos esperavam que ele também risse; ele sorria. Forçado.
Se perceber agindo assim foi ruim. Pior foi se descobrir assim mesmo: sempre forçado a. Sufocava. Afinal, segundo o senso comum, ele tinha pelo menos um grande motivo pra ser feliz: saúde. “Saúde e paz, o resto a gente corre atrás”. Porra nenhuma. Quem corre atrás cansa; ele queria chegar na frente e logo. Por isso levava a vida a sério.
Se nem nas horas de folga o descanso vinha! Na casa sem luxos, as tarefas domésticas se dividiam entre ele e a esposa a conta-gotas. Diferente não seria justo; ela também tinha emprego, patrão, cartão de ponto, calo, joanete. Roupas, louças e vassouras eram compartilhadas com igual responsabilidade. Sem favores, sem gentilezas, nem concessões. Na justa medida da possibilidade de cada um e da necessidade dos dois.
Dos três, que a menina também tinha as dela. Naquele tal dia, precisou de cabelereiro.
Brincando sozinha no quarto – ele nunca brincava com ela; não tinha tempo nem paciência para aquelas bobagens de criança –, embolou uma tesoura sem ponta nos próprios cabelos e não conseguia se livrar dela, nem dos nós que se multiplicavam a cada tentativa de desembaraçar o instrumento dos cachos.
Ele esbravejou, sacudiu a menina pelo braço. Ela o olhava assustada, não entendia o que tinha feito de tão grave. Ele tentou arrancar a tesoura, primeiro com jeito, depois com força; muitos ais e lágrimas depois, nenhum sucesso. Pensou em usá-la para abrir o próprio caminho, cortando os cabelos da filha; desistiu, a mulher ficaria furiosa. Não tinha jeito: teria que perder seu tempo de descanso destecendo aquela cabeleira, desfazendo o emaranhado nó a nó. Largou a tesoura e se deteve, então, nos fios.
Como eram finos… E, apesar de longos e muitos, que frágeis que eram! Um pouco mais de força os arrancava, mais ais se ouviam. Precisava precisão de bicho caçador para catá-los. Atentou que nunca tinha atentado neles pra valer. Pelo menos não assim, de perto. Percebeu que não eram de fato pretos, mas de um castanho bem escuro, como borra de café. Lembrou de ouvir falarem de charlatães que dizem fazer previsões lendo borra de café e assim enganam muita gente. Imagine! O amanhã não se antecipa, não se adivinha; o amanhã é a gente que faz, com trabalho sério. Se não se pode enxergar o futuro nem na brancura da folha de papel em branco, que dirá na quase negrura de borra de café em cachos…
Era mais provável que numa falsa pretidão assim se visse o passado, o desconhecido, o medo, a ansiedade, a angústia de ter que tatear saída em meio a uma teia de fios finíssimos, frágeis e praticamente invisíveis um a um, mas densos e compactos agindo juntos – pegajosos, imobilizantes. Vez ou outra, havia falsas esperanças: um nó desfeito aqui, dois criados mais além; uma cor diferente (algo mais clara) surgia, era a pele dos próprios dedos se expondo entre mil fios, como para deixar claro que aquela ainda não era a liberdade, a saída estava em outro lugar. Esse seria um passado visível.
Ou, então, talvez, no máximo, de uma tal seminegridão se enxergasse o presente: a luta às cegas, a incerteza, a insatisfação e o medo que o tempo não leva. Sim, porque o medo não deve ser uma flor amarela, mas, sim, algo como a borra de café: ele parece, mas nem preto de verdade é. O medo não é seco nem molhado; é úmido. Algo que já foi quente, vazou e rapidamente esfriou. É um apático momento-lugar entre uma coisa que se foi e outra diferente que se quis ser, só que não. E por isso mesmo esse tal momento-lugar, o medo cor de borra de café, não pode ter outra vocação além do descarte. Mas ele teima e fica, não passa. Logo, o futuro também não podia estar ali naquela quase-pretura.
A menos que os cachos-borra começassem a se abrir, os nós-farelo se enternecessem, os fios-pó resolvessem se desfiar, os ais da criança sossegassem e virassem um monossilábico canto… de ninar. Encantados, os dedos então ganhariam uma estranha agilidade, e também olhos que, iluminados pela memória de medos passados e devidamente descartados, se antecipariam a possíveis novos nós, evitando-os, contornando-os ou apenas aceitando sua existência, cientes de que a eles sim, aos nós, o tempo desfaz. Aí, canto e dedos continuariam seu trabalho de destessitura: menos nós, menos medos, menos fios, menos sílabas, uma só mais-melodia, agora uma apenas voz, a do pai, solfejando uma desconhecida ternura, cofiando uma inusitada sensação de não se sentir forçado a, mas de, ao mesmo tempo, desejar tanto que o tempo não passasse nunca – para aquele momento não se acabar – quanto que passasse logo, para que, desfeitos os embaraços, as brincadeiras de sua filha alegre e sorridente nunca mais fossem interrompidas por nenhuma tesoura.
De repente enxergou: na verdade, o medo era sim, de fato, só uma flor amarela, o futuro era a negra cabeleira dormindo sorrindo em seu colo… E sorriu também.
E de repente a mulher abriu a porta aos soluços (nem lhe notou o sorriso). Chorava muito; atravessou a sala bêbada, não falava nada com nada. Só a custo ele entendeu a palavra “leucemia”. A menina tinha leucemia. Sério, certo, sem esperança.
No dia seguinte foram ao hospital. No outro a outro. E nos seguintes, muitos. Maior que tudo, a pequena sorrindo sempre.
Dois meses depois, saíram de casa mais às pressas: a menina com febre. Os médicos preveniram do perigo da febre. Três dias depois, em pé num corredor qualquer, a mulher ressonando encolhida no ferro gelado de um banco, ele se deu conta de que acabara de ficar realmente sozinho; nem o cansaço o acompanhava mais.
Súbito percebeu o próprio engano: o abraço esponjoso do silêncio no corredor era ainda mais gelado que o ferro do banco. Sentou ao lado da mulher e a abraçou também.
Se assustou com algo quase quente em seu braço. Era a mão de uma enfermeira muito séria que falava coisas confusas sobre força e vontades de deus.
O dia já estava raiando quando uma luz diferente pareceu atingir o caixãozinho branco num canto da funerária. Seria aquele mesmo, o mais barato, estava bom. A mulher queria algo melhor, mas desistiu quando ele perguntou pra quê e emendou sem pausa que ela precisava parar de chorar, se controlar e ir vestir a criança.
Por telefone, só duas ou três pessoas ouviram de sua voz firme a informação direta, sem preâmbulo: sepultamento ainda naquele dia, às 15h. Sim, acabou. Obrigado.
A capela praticamente vazia. A mulher chorando. Rostos meio familiares entre a lisura atônita e o enrugamento protocolar. Ele de pé num canto: cabeça erguida, ombros abertos e cenho franzido, uma faca lhe rasgando do peito à garganta, girando e voltando ao peito. Tudo devagar e doído como nada devia ser.
Em meio àquela dissecação, um homem uniformizado surge à sua frente e diz secamente que já são 15h. Sem saber por quê, faz um gesto ao homem e pede um minuto. Caminha em direção ao caixãozinho branco que não ocupa nem metade da velha maca de mármore encardido. Mais um grito desesperado da mulher é a última coisa que ouve antes de se surpreender de novo com o rostinho de sua filha, lindo, emoldurado por flores amarelas.
Ela estava apenas serena; não parecia sorrir como dizem que acontece aos bons e inocentes nessas horas. Ela era inocente e boa, então onde estava o sorriso, que não aparecia? Cadê? Por que não voltava? Rir não era tão fácil pra ela? Por que não ria agora? Por que não agora? Por quê? Por que não continuar fazendo todo mundo à volta rir à toa? Por que fazer a gente ali chorar? Por quê? Por quê?
A culpa só pode ser delas, essas malditas flores amarelas. É o medo que vem delas que cria tantas dúvidas. Elas estão ali escondendo o futuro, o futuro que na verdade ainda sorri na borra de café dos cabelos da menina. Basta afastar o amarelo-medo e o sorriso certo da menina vai voltar, todo mundo vai ver. Ela está só cochilando, como aconteceu no outro dia, há alguns meses, no seu colo. Lembrou daquela sensação boa, da paz e da segurança daquele momento. Lembrando, sorriu – para a surpresa de todos. Se alguém tivesse antes visto aquele, esse inesperado sorriso de agora decerto o lembraria, ao outro, o primeiro.
Sorrindo e causando surpresa, começou a afastar as flores do rosto da filhinha, com calma. Mas era um exagero de flores adiando o encontro com aqueles cachos! Ok, bastava então levantar a cabeça da criança para liberar a densa cabeleira escura daquela amarelidão medrosa. Pálido, o pescocinho surgiu, e tocá-lo deu a certeza de que tanto amarelo não podia mesmo manter a filha aquecida. Mas que merda! Não, ninguém entendeu nada! Podem deixá-lo! Ela está só dormindo, o sorriso dela está aqui, é só acariciar os cabelos, olha:
Não. Não estavam. Ou melhor: estavam, mas não eram. Ralos, muito ralos, sem viço, os cabelos da criança tinham virado um rascunho melancólico de si mesmos. Pior: agora frágeis como um velho papiro, os cachos-antes-borra não resistiam ao mais cuidadoso carinho paterno, se partiam e se soltavam, sem ais, da cabecinha inerte da menina, agarravam-se aos dedos trêmulos do homem, que, buscando desesperadamente neles o esteio, desgarrou de qualquer esperança.
Então seu só segundo sorriso sincero desgarrou também de sua cara abatida. A criança, o futuro, o pai, o sorriso: todos irremediavelmente mortos. Ele soltou a cabeça da filha e deu um passo absorto pra trás.
A mulher, sem chorar, autorizou com um gesto de cabeça que o homem de uniforme fechasse o caixão.
Alheio à saída do cortejo, imóvel no meio da capela vazia, o pai olhava para uns poucos fios de cabelo da filha morta em suas mãos, e uma lágrima lhe caiu dos olhos para molhá-los.
Uma só.
Luciano Nascimento é mangueirense, filho, marido, pai, professor, flamenguista, psicopedagogo… mais ou menos nessa ordem. É, também, idealizador do projeto Dê Efiência.(www.deeficiencia.com.br) E-mail: prof.lcnascimento@gmail.com
Galeria: artistas para seguir na quarentena
Apoie pautas identitárias. Em tempos de cólera, amar é um ato revolucionário.