Apesar de muitos estudos e dados relacionados ao período da ditadura no Brasil, ainda hoje se sabe muito pouco sobre os crimes cometidos contra as populações indígenas. A história desses povos, a partir de 1500, tornou-se frequentemente ligada à brutalidade, genocídios e perseguição, mas o que ocorreu durante o período ditatorial ainda pode ser considerado um “massacre silencioso”.
O documento mais importante que denuncia algumas das atrocidades é o chamado “Relatório Figueiredo”. Em 1967, o procurador federal Jader Figueiredo publicou um relatório de 7.000 páginas que catalogou inúmeros crimes cometidos contra os indígenas, principalmente por parte de grandes proprietários de terra e agentes do Estado, dentre os quais destacamos: escravidão, tortura, prostituição de índias, usurpação de terra e assassinatos. Entretanto, este relatório ficou desaparecido por 44 anos sob a alegação de que teria sido destruído em um incêndio, mas felizmente foi encontrado praticamente intacto por pesquisadores em 2013.
Dentre as apurações do relatório, algumas parecem tiradas de um filme de terror ou uma ficção bizarra demais para acreditar. Ao percorrer mais de 16.000 km com sua equipe, o procurador soube da existência de caçadas humanas de indígenas feitas por meio de metralhadoras e dinamite atiradas de aviões, inoculações propositais de varíola em tribos isoladas e até doações de açúcar misturado a estricnina – um ácido proibido em vários países em razão de sua toxicidade.
Um famoso caso ficou conhecido como “o massacre do paralelo 11”, em que um barão do setor de borracha ordenou que fossem arremessadas dinamites em uma aldeia indígena do povo “Cinta Larga”, e os que sobreviveram ao atentado acabaram assassinados por seringueiros que os atacaram com facões.
Outra denúncia conhecida envolve o “Reformatório Krenak”, um verdadeiro presídio que serviu como centro de detenção arbitrária para indígenas dessa etnia. O objetivo era a destruição do grupo, e prova disso foram os deslocamentos forçados que levaram ao adoecimento psíquico de vários membros dos Krenak a partir de um processo de traumatização coletiva, além da violação explícita de direitos culturais e reprodutivos, como obstáculos para que os nascimentos ocorressem no seio do grupo, contrariando os sistemas tradicionais.
Mas voltemos um pouco no contexto brasileiro da época. Exista a pretensão, por parte dos militares, de uma integração do território nacional ao mesmo tempo em que se buscava expandir suas fronteiras internas. Desde o governo Castelo Branco de 1964, as diretrizes de segurança e de desenvolvimento econômico buscadas pelo Estado deixaram evidente o ambicioso plano de deslocamento de populações para exploração estratégica do território, principalmente na região amazônica.
Assim, as populações indígenas estavam diretamente posicionadas entre os militares e a realização de um projeto desenvolvimentista que não se alinhava com demarcação de territórios ou puramente a proteção aos direitos humanos. O preço pago foi altíssimo: perseguições, prisões, ataques que iam de envenenamento por alimentos misturados com arsênico, a aviões que atiravam brinquedos contaminados com vírus de sarampo ou varíola para as crianças das aldeias.
Segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade, entre 1964 e 1985, ao menos 8.350 indígenas foram mortos em algum desses atentados, o que corresponde a, no mínimo, 10 etnias diferentes. A abertura da Rodovia Transamazônica – possivelmente o maior ideal faraônico da ditadura, que pretendia cruzar o país através da Amazônia – também contribuiu para os números, sendo que 29 grupos indígenas foram afetados de forma trágica, incluindo 11 etnias isoladas.
Felizmente, vem sendo realizado um trabalho por parte do Ministério Público Federal, no âmbito da Justiça de Transição, que além de denunciar e dar voz a muitas tribos busca também reparações e respostas para o que ocorreu durante o esse período sombrio. Em fevereiro de 2014, o Grupo de Trabalho “Violações dos Direitos dos Povos Indígenas e o Regime Militar” obteve a primeira decisão judicial favorável: a determinação para que a União e a FUNAI adotassem medidas visando reparar os danos permanentes causados aos povos indígenas Tenharim e Jiahui em decorrência da construção da rodovia Transamazônica (BR-230) em seus territórios.
Inicialmente, as atividades do projeto deram foco a três grandes casos: as violações aos direitos do Povo Waimiri-Atroari, no Amazonas; o caso do Reformatório Krenak; e as atividades da Guarda Rural Indígena (GRIN), em Minas Gerais.
“Helicópteros que sobrevoavam as aldeias derramando veneno e detonando explosivos sobre centenas de indígenas reunidos para celebração de rituais de passagem. Ataques a tiros, esfaqueamentos e degolações contra os sobreviventes. Tratores que passavam destruindo roçados, locais de passagem e antigas capoeiras de aldeias centenárias.”
Essas foram algumas das cenas descritas por indígenas Waimiri-Atroari (autodenominados Kinja), que falaram em público pela primeira vez durante a audiência da ação civil pública que buscava a reparação e indenizações pelas violações que vivenciaram entre a década de 70 e 80. Apesar da ação reparatória contra o Estado brasileiro, nada apagará o fato de que o terror quase levou o grupo à extinção, e tudo isso em nome da abertura da BR-174.
Apesar de algumas das descobertas serem recentes, o reflexo da ditadura militar em relação aos povos indígenas é um tema ainda muito pouco abordado, mesmo que essas populações historicamente já fossem vítimas da ação repressiva do Estado. Além disso, trata-se de uma população que precisa e sempre precisou ser ouvida, e prova disso é como a violação dos seus direitos durante a ditadura não teve a mesma visibilidade de outras violações a direitos humanos.
As dificuldades eram tantas, que a própria Comissão Nacional da Verdade não conseguiu identificar todas as vítimas fatais no período investigado, tanto por questões geográficas quanto linguísticas. Por isso falamos em morticínio silencioso, já que até hoje esse lado da ditadura é praticamente ignorado.
Muito do que o governo atual tem feito é fruto de uma consciência militar, e não podemos esquecer que a ditadura acabou, relativamente, há pouco tempo. É importante olhar para trás para traçarmos um paralelo com a política indigenista de hoje, e vemos muitas simetrias. Há, por exemplo, uma tendência de distorção e até mesmo ocultação de dados, e se ocorria um negacionismo naquela época com afirmações de que os números não eram tão altos ou que os indígenas não estavam sendo perseguidos, hoje vemos praticamente a mesma coisa, ainda mais no contexto da pandemia do novo Coronavírus.
Hoje no Brasil, novamente, existem elementos que comprovam a ocorrência de crimes contra a humanidade na resposta do governo à pandemia, quais sejam: intenção, plano e ataque sistemático (por ação e omissão).
Entendemos que os povos indígenas sempre foram colocados em uma agenda de extermínio. Nossa esperança é que as atuais denúncias sejam capazes de parar esse projeto, e que a violência não seja patrocinada e incentivada por aqueles que devem combatê-la.
Notas
(1) o Relatório Figueiredo, apesar de muito importante, apresentava problemas e não catalogou todos os casos da época, inclusive o procurador chegou a afirmar que não estaria ocorrendo um genocídio. Como sabemos hoje, a ditadura estava apenas no começo, e as pesquisas apontam que o genocídio já havia começado.
(2) o presente texto objetivou o levantamento de informações sobre o tema e a exposição dos mesmos, correlacionando a matéria ao Direito. Naturalmente não se pretendia a discussão sobre o ponto de vista daqueles que realmente sofreram e sofrem opressões e ataques. Aos que se interessarem em saber mais da história pela voz dos indígenas, deixo abaixo alguns documentários e vídeos de acesso gratuito no Youtube:
- GUERRA SEM FIM – Resistência e Luta do Povo Krenak (Endless War – 2016)
- MARAWATSEDE – O RESGATE DA TERRA
- Ditadura criou cadeias para índios com trabalhos forçados e torturas
REFERÊNCIAS
MPF. Audiência na Terra Indígena dos Kinja. Disponível em: <http://www.justicadetransicao.mpf.mp.br/eventos/audiencia-na-ti-dos-kinja>
MPF. Justiça de Transição – Povos Indígenas. Disponível em: <http://www.justicadetransicao.mpf.mp.br/povos-indigenas>.
UOL. Conheça o capítulo pouco lembrado da ditadura milita brasileira. Disponível em: <https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/indigenas-conheca-o-capitulo-pouco-lembrado-da-ditadura-militar-brasileira.phtml>. UFMG. Ditadura militar e populações indígenas. Disponível em: <https://www.ufmg.br/brasildoc/temas/5-ditadura-militar-e-populacoes-indigenas/>.
Déborah Silva é pós graduanda em Direito Constitucional.
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Quantas informações importantes nesse texto, Deborah! Que lástima o que aconteceu e continua a acontecer com os povos nativos, absolutamente deliberada
A ditadura militar no Brasil pode ser classificada como “idade das trevas.”
Obrigada por trazer esses temas!
“E aquilo que nesse momento se revelará aos povos / Surpreenderá a todos não por ser exótico / Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto / Quando terá sido o óbvio”