A distância entre escrever, publicar um livro e ser um autor, um artista. Quantos de vocês, que escrevem em revistas como a Trama, ou que mantém cadernos de poemas, já não pensaram sobre isso?
Muitos medos e dúvidas e angústias assolam o jovem escritor, que se questiona sobre fazer certo, ser repetitivo, não ser bom o suficiente, ter travas de criatividade. Porém, chegar ao ponto de reivindicar para si o título de autor, de artista, passa por tudo isso e muito mais.
Essa semana, a Trama conversou com o Vinícius Lara, nosso queridíssimo autor fixo da Trama, sobre o fazer literatura, as memórias e outras devaneios – além de, claro, sobre o seu primeiro livro de poemas, Deslembrar. Rola pra baixo pra conferir a entrevista!
Trama: O Deslembrar é a sua estreia no mercado editorial. Você escreve desde crônicas até reflexões; por que estrear justamente com poesia?
V: Eu comecei publicando o Deslembrar porque eu não sabia que eu escrevia crônicas. Sabia que escrevia alguns ensaios, alguns artigos de opinião; mas como eu acho seco demais, e eu sou racional demais, eu preferi brincar com a poesia.
A minha escrita nas crônicas, ou das crônicas, dos contos, e de outros gêneros, ela vem depois da poesia. Então é como se a poesia, a prosa poética, tivessem aberto caminho para os demais textos – o que faz com que hoje eu esteja até trabalhando na organização de uma coletânea de crônicas. Mas o Deslembrar vem primeiro porque ele nasceu primeiro. A poesia foi a primeira forma de me expressar, no campo da literatura, que eu encontrei.
T: E me conta um pouquinho sobre esse nascimento do Deslembrar?
V: 2019 foi um ano marcado por muita coisa. Eu vivi experiências muito intensas, dores muito grandes, alegrias maiores do que eu imaginava, e de alguma forma o Deslembrar é uma forma, uma maneira que eu encontrei para dar um lugar diferente para essas memórias, todas muito intensas. E me incomodava a ideia do esquecimento. E por isso eu fui permitindo que a mente transbordasse na poesia aquilo que o coração conseguia elaborar.
Essa coletânea ocupa o espaço de uma memória revisitada. “Deslembrar” não significa esquecer; “deslembrar” é lembrar de uma forma diferente. Então, o livro, ele é, em última análise, uma impressão das minhas memórias fora de mim.
T: Você comentou, na sua resposta, que o livro tem muito a ver com as suas memórias e vivências de 2019; porém, você escreve muito muito antes disso. Você teve ocasiões outras em que pensou em lançar um livro? Se sim, por que só o fez agora?
V: Não, não tive. Eu acho que, antes, eu não estava em paz comigo mesmo. E claro que isso não é uma regra, mas o Vinícius, quando não está em paz, ele queria ser professor do mundo. Eu escrevi muitos artigos de opinião, textões pra mídia social, e vai uma grande distância disso para a literatura. Porque a literatura é um brincar de ser que se é.
Eu gosto muito de um texto do Camus em que ele faz um análise sobre o escrito literário francês, e ele vai dizer que os autores bons escrevem sempre sobre uma mesma coisa – e eles escrevem sobre uma mesma coisa de formas tão diferentes, tão bem camufladas, que o leitor vai achar que são coisas distintas, mas é a mesma história. E, para isso, é preciso paz; pelo menos, para encarar a sua angústia.
Antes, eu não pensava em publicar, porque eu não tinha coragem de olhar para as minhas angústias. E eu acho que foi no ano passado que essa parte do Vinícius conseguiu ficar tranquila, e por isso deu à luz a textos. Então, hoje, dificilmente eu vou publicar um artigo de opinião, uma crítica; eu gosto de transitar pelo texto tentando dizer quase sempre a mesma coisa, com métricas diferentes, formas diferentes, estilos diferentes. Brincar de criar a realidade.
T: E nesse processo de dizer “as mesmas coisas”, você não se sente repetitivo? Enfadonho?
V: Essa pergunta é boa, se eu não me sinto repetitivo. Mas é aí que eu acho que acontece a escrita. Porque falar da mesma coisa não é igual a falar do mesmo jeito. Escrever, pra mim, tem essa capacidade de olhar para a realidade de uma forma muito pessoal; então talvez, alguém, lendo os poemas, ou colocando em série as crônicas que são publicadas na Trama, pode dizer que não tem absolutamente nada a ver uma coisa com a outra.
Na semana passada, você publicou o texto de um tal Vinícius que comete suicídio, e há duas semanas, era uma menina que se de repente se tornou um balão, uma pipa. Não tem relação, uma coisa com a outra. Mas os textos estão dizendo do mesmo. A literatura, para mim, mora aí. Repetir não necessariamente é fazer igual, mas é deixar uma parte do texto, um núcleo duro, uma espinha dorsal, que está sempre tocando naquilo que o autor entende enquanto sendo sua questão existencial, ou uma questão existencial mais ampla.
T: Pensando no sentido de que você tem essa percepção sobre o que é literatura hoje, e sobre o caminho que te levou até ela; quando você olha pra trás, como você percebe que as angústias do Vinícius autor mudaram?
V: Eu não sei se elas mudaram. Elas apareceram. Durante bastante tempo, eu acreditei que existia um sentido existencial finalístico, e que era muito coletivo, e então que quase todos nós buscávamos o mesmo fim; mas hoje, eu não concordo com isso, mais. Meu contato com a psicanálise e com a filosofia existencialista me fizeram pensar que, por mais que a gente conquiste coisas, há sempre um resíduo de desamparo. Que é o desamparo de existir, de viver em um mundo como o nosso. Mas, por muito tempo, eu não percebi isso. E eu ficava pulando de experiência em experiência tentando dar sentido a coisas que são naturalmente erráticas, naturalmente impermanentes, transitórias. Daí vem a angústia do autor.
T: Você tem formação em Psicanálise e em História, além de uma vivência religiosa aprofundada. Você consegue elaborar a influência que você vê de cada uma dessas coisas – e/ou de outras que você achar relevantes – dentro da sua percepção dessa angústia de “viver no mundo” que você comentou?
V: Pois é. Eu acho que aí aparece uma costura muito sutil. Porque eu tive uma experiência religiosa muito marcante, desde pequeno; depois fiz a faculdade de História, e fiz o mestrado; depois tive outra experiência religiosa intensa, agora mais próxima ao Budismo Tibetano; e a última coisa que aparece é a psicanálise, nessa linha temporal. Mas curiosamente, é ela que costura todas as coisas.
É muito difícil a gente pensar que existir é inseguro; mas é. E é exatamente quando a gente percebe isso que nós vamos buscando verdades universalizantes, que sejam capazes de anestesiar um pouquinho o nosso desamparo. Então eu vejo que a minha caminhada, num processo de pensar a vida, parte de um polo, de uma noção universalizante da existência, e chega na contemplação desse drama existencial. Eu não considero que eu tenha aberto mão de princípios espirituais, nada assim; é como se eu viesse, ao longo desses anos, ajustando uma lente, para conseguir ver a realidade de formas mais detalhadas, mais específicas.
T: E na busca dessas “verdade universalizantes”, você tem planos para mais livros?
V: Pra buscá-las, de jeito nenhum (risos). Hoje, a minha meta é destruí-las todas, colocar tudo abaixo. É perceber justamente esse espaço da incerteza, da experiência, da subjetividades. Então, nessa perspectiva, de jeito nenhum.
Agora, penso sim, em publicar a coletânea de crônicas. Agora, quando, como vai vir? Isso, eu já não tenho ideia.
T: E a gente falando de todas essas questões e angústias, e pensamentos filosóficos, eu queria que você fizesse o movimento oposto: me conta um pouco do Vinícius cotidiano, que usa referências de desenhos animados nas crônicas e gosta de ir pra Ouro Preto…
V: (risos) o Vinícius cotidiano é bem isso o que você coloca. Minha rotina é muito tranquila; eu sou professor, ministro aulas de Sociologia e História; termino um Doutorado em Sociologia da Religião; e tenho meu consultório, onde trabalho como psicanalista. Gosto bastante de ler; adoro algumas sacadas de alguns memes; tenho pouca paciência para séries, acho que nunca assisti a uma inteira a não ser Rick e Morty; mas uma vida bem comum. E eu acho que usar essas referências, como o Marsupilami e Ouro Preto, é falar um pouquinho dessa realidade, né?, comum. Porque eu tenho medo de descolar demais o texto da realidade, e o texto fica longo, distante, estranho, quase elitista. Eu fico sempre pensando que eu gostaria que as pessoas, e praticamente todas, ou todas que leem aquilo o que eu escrevo pudessem ter pelo menos uma referência com a qual se identifiquem.
T: Você comentou sobre essa questão da acessibilidade da sua literatura, sendo que você desenvolve pensamentos muito complexos. Nesse sentido, qual é o valor que essa acessibilidade tem para você, enquanto produtor de conhecimento na academia e enquanto autor de literatura?
V: Essa acessibilidade, para mim, é a razão de existir toda e qualquer expressão artística. Eu não consigo conceber que exista algum sujeito que não seja complexo. E aí surge uma dicotomia interessante: o pensamento complexo não pede, necessariamente, um texto complexo. É claro que isso é uma tentativa e erro, mas eu imagino que alguns autores escrevam tendo como destino o próprio gozo, apenas; uma fruição estética. Eu não consigo compreender assim. O texto tem que dizer alguma coisa, para alguém. Ele existe para isso. Portanto, pensar que as pessoas lerão e que, quando lerem, terão uma identidade mínima que seja com ele, é o que me move a escrever.
T: E pra que serve a literatura, afinal?
V: Eu não tenho a menor ideia. Mas, para mim, literatura é incômodo. É revolta. É resistência. O texto serve para demarcar a nossa insatisfação com o real. Por isso, pelo texto da prosa ou da poesia, a gente dá um contorno diferente para o real; musical, quase; ritmado. E, na prosa, a gente cria uma realidade. E criar realidade, para mim, é a maior expressão de resistência, porque é quando uma pessoa decide dizer que a realidade não basta, é preciso criar. Por isso, para mim, a literatura é resistir à insensibilidade.
T: Qual pergunta você gostaria que eu tivesse feito e não fiz? E qual a resposta para ela?
V: Gostaria que você tivesse me perguntado qual é o tema sobre o qual eu sempre escrevo. E a minha resposta seria: “infelizmente, isso não é da conta de ninguém”. É um segredo que eu guardo só pra mim.
‘Deslembrar’, título de estreia de Vinícius Lara, foi publicado pela editora Kotter e já está à venda na Atena Bookstore.
Sobre a Entrevistadora:
Carol Cadinelli é jornalista, apaixonada por palavras. Escreve, edita, revisa, traduz e, vez ou outra, fotografa. Atualmente, é editora na Trama, Social Media na Peregrina Digital e escritora nas horas vagas.
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