Como você vive?
Essa pergunta, aparentemente simples, acaba tomando novo significado diante do contexto de pandemia que experimentamos. Mais do que um ano atípico, 2020 foi um triste marco histórico que revelou, acima de tudo, a fragilidade e os verdadeiros problemas da nossa condição humana.
Sob a ótica da cultura, no Brasil, a resposta para essa pergunta banal traz para a superfície a dimensão desigual de nossos sistemas econômicos e arranjos sociais. Afinal de contas, a maneira como vivemos depende diretamente do contexto em que estamos inseridos. Por isso, a experiência do isolamento precisa ser analisada a partir de uma perspectiva humanista, a qual leva em consideração o fato de que grande parte da população brasileira suporta a penúria do risco imposto pelo vírus – que vem somada, por sua vez, ao empilhamento de riscos impostos à sua própria existência dia após dia.
Sendo assim, o impacto da pandemia começa a ser desenhado acompanhando essas nuances, e o contraste da imagem produzida acompanha, infelizmente, esse contorno desigual. Inclusive, não é novidade que o Brasil figura entre os países mais desiguais do mundo. De acordo com o relatório de desenvolvimento humano divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Brasil alcançava, já em 2019, o sétimo lugar no ranking mundial. Nesse sentido, com uma tremenda desigualdade consolidada ano após ano em rankings e estatísticas, com patologias sociais arraigadas no tecido social (como o racismo) e com um ambiente político fragmentado e beligerante, temos aqui, infelizmente, a fórmula para um cenário de tragédia de grandes proporções.
Muito embora a descrição acima não seja nem um pouco otimista, estamos propondo pensar o isolamento como agente catalisador de pensamentos e questionamentos sobre aquilo que é, de fato, essencial em nossas existências. Isso porque a pandemia trouxe à tona uma sensação de fragilidade que há muito tempo estava esquecida, disfarçada entre os avanços da medicina moderna, o conforto da tecnologia e a distração da conectividade. Essa fragilidade exposta pelo vírus nos colocou diante de um apanhado de incertezas – as quais, certamente, ainda vão se arrastar por alguns anos da nova década.
Partindo dessa premissa, podemos entender que a percepção do impacto do vírus se construiu de acordo com esse sistema de gerenciamento de riscos nas castas sociais. Aos que gozam do conforto daquilo que é supérfluo e que se acostumaram com a estabilidade ilusória construída com base nessa estrutura desigual, a pandemia se apresentou como um risco com o qual sua posição social não o preparou para experimentar, gerando reações intensas de medo e insegurança. Diga-se de passagem, o impacto dessas reações foi rapidamente superado pelo tédio da quarentena… (nesse ponto, cabe aqui abrir um parênteses: não vamos tomar como exemplo a manada de radicais de direita. Estamos falando de pessoas comuns, que se acostumaram a seus privilégios, certo?). Pois bem, de qualquer forma, o início da experiência da pandemia trouxe questionamentos sobre o próprio modo de vida com um nível de profundidade que o cotidiano nunca foi capaz de contemplar, lançando luz sobre qual é, de fato, o mínimo essencial para o exercício da vida com dignidade.
Por outro lado, aos que se encontram na periferia dessa sociedade, a necessidade de conviver com o medo de ser acometido pelo vírus precisou dividir espaço com o medo diário de não conseguir suprir as necessidades básicas de sobrevivência. Ou seja, existe um empilhamento de crises, tensões e incertezas que são potencializadas pelo contexto de pandemia e endereçadas ao cotidiano de grande parte da população, o que fica evidente quando tomamos como exemplo a questão das tensões raciais. De acordo com Isabel Santos Mayer, educadora e ativista dos direitos humanos, durante o bate-papo no evento Trama: troca de saberes em Arte, Cultura e Criatividade, ser negro no Brasil é se enquadrar, desde o nascimento, em um grupo de risco. A coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (IBEAC) também aponta a estrutura necropolítica em que vivemos como principal combustível da barbárie econômica e social. Por esse motivo, a suposta reflexão sobre os rumos da própria vida, muitas vezes, se configura como uma constante para essa parcela da população – e o vírus foi responsável por trazer apenas mais uma modalidade de preocupação, além, claro, de amplificar em níveis extremos as demais variáveis dessa conta.
Colocados esses dois cenários e projetando sua intersecção como metodologia para obter a resposta para a ordinária pergunta com que começamos esse texto, vou recorrer à potência do fenômeno da arte para comunicar algumas reflexões.
O premiado fotógrafo Ale Ruaro é conhecido por desenvolver projetos artísticos que tratam a fotografia como força humanista, colocando seu olhar à serviço da investigação da condição humana em profundidade. Em sua série retratando moradores de rua no centro da cidade de São Paulo, há pelo menos 3 anos, o fotógrafo consegue dimensionar o contraste debatido nesse texto de forma eloquente e perturbadora.
Tratando essa dualidade no contexto de pandemia exposto nesse artigo, o trabalho de Ale nos proporciona a oportunidade de nos submetermos ao impacto da indiferença, que invisibiliza pessoas em situação de rua e as coloca como trágicos ornamentos na fria paisagem urbana das grandes metrópoles. Por outro lado, ele também evidencia sua perspectiva humanista, sobretudo quando comparamos as fotos acima com as um de seus projetos mais recentes, em exposição virtual no Panteão do Memorial da República Presidente Itamar Franco. Na mostra E AGORA?, Ale se propôs retratar trabalhadores essenciais, pessoas que não tiveram a opção de entrar em quarentena por atuarem em atividades listadas como essenciais pelo poder público.
As fotografias, que colocam no centro da imagem figuras humanas cujo trabalho é aquilo que supomos essencial para a manutenção da ordem social, trazem consigo a oportunidade de revelar a dimensão comum das concepções sobre aquilo que é indispensável e crucial para a vida. No entanto, das diversas maneiras de se exercer a vida no mundo em que vivemos, o essencial muitas vezes pode estar no esvaziamento de nossas convicções reificadas. Por isso, posto que a arte se encontra na esquina de nossas vivências e convenções estabelecidas, devemos destronar as nossas certezas diante de um mundo isolado e com medo. Para o desenvolvimento de uma percepção mais plural e solidária sobre aquilo que é essencial a partir de uma visão crítica sobre as distintas realidades apresentadas, precisamos sempre estar preocupados com as possíveis respostas que daremos para a pergunta: como você vive?
“O que é verdadeiro sobre todos os males do mundo, também é verdadeiro em relação à peste.
Ajuda os homens a se superar.”
Albert Camus
Referências:
MORIN, Edgar. É hora de mudarmos de via: as lições do coronavírus. 1 edição – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.
The Next Frontier: Human Development and the Anthropocene. United Nations Development Program. 2020. Disponível em: http://report.hdr.undp.org/index.html
MAYER, Isabel Santos. Antirracismo em bibliotecas comunitárias. Apresentação em live no evento Trama: Troca de saberes em arte, cultura e criatividade.
Frederico Lopes é artista, educador, encadernador e escritor. É fundador da Bodoque Artes e Ofícios. Atua como Editor-Chefe da Revista Trama e Diretor do Museu de Artes e Ofícios Bodoque.