A “poética dá novas existências aos objetos, abrindo outras percepções”. Com essa frase, Francisco Régis Ramos define a importância do olhar poético para a reconfiguração de sentidos dos objetos no contexto museológico. Sabemos que não há exposição “inocente” ou “imparcial”. Como afirma Ulpiano Meneses, “o museu não reproduz a vida, ele é parte da vida, atendendo às nossas necessidades de representação.” Acontece, porém, que discursos e narrativas podem se tornar perenes e cristalizados, tendo o poder de naturalizar, enquadrar e engessar olhares, transformando a mensagem em “verdade absoluta e imutável”.
Aqueles acostumados a frequentar museus sabem que não é raro observar objetos que permanecem, durante gerações, ocupando o mesmo lugar dentro de um circuito expositivo. Os espaços convencionalmente chamados de “museus históricos” (há muito, marcados por sacralizações de objetos e personagens “célebres” através de narrativas canônicas e laudatórias) são ainda – com exceções, é claro – os mais refratários às mudanças.
Ramos defende que a arte de provocar “estranhamentos” é um dos pré-requisitos fundamentais para que os objetos despertem novas reflexões e conhecimentos no público, mostrando-se um caminho bastante fértil e potente para retirar o interlocutor do lugar de passividade que muitas vezes lhe é reservado. Há de convir, entretanto, que não é tarefa fácil desarraigar um objeto icônico de seu lugar consagrado, do “enquadramento de memória” que lhe foi designado, para submetê-lo a um processo de ressignificação. Esse esforço, além de implicar questionamentos de “verdades estabelecidas” (tão caras às estruturas de poder consolidadas), quase sempre retira o público de sua “zona de conforto”, despertando reações pouco ou nada generosas.
No entanto, por mais canônica que seja a narrativa envolta em um determinado objeto, a recepção da mensagem não compreende um processo mecânico ou unívoco. Apesar da existência de um núcleo narrativo duro e coletivamente compartilhado, aparentemente imutável, que perpassa as percepções de cada indivíduo acerca de determinado objeto exposto, é quase sempre possível entrever valiosas variações nesse processo comunicativo. Afinal de contas, como nos lembra Chartier, nenhum autor é absolutamente eficaz em “ditar tiranicamente o significado” de sua mensagem ao interlocutor, pois cada um se apropria de algo a partir de seu próprio repertório cultural, de suas experiências de vida, valores, etc. Assim, é preciso que os profissionais de museus fiquem atentos às variadas recepções e apropriações de seus públicos.
É mais do que sabido que, para captar as variadas nuances subjetivas do público, os profissionais de museus precisam lançar mão de estratégias de apreensão desses significados. Não há como dispensar, portanto, a capacidade de escutar e observar tudo meticulosamente. Promover ações capazes de estimular a evocação de memórias afetivas do público pode ser um caminho interessante. O concurso de poesia que o Museu Mariano Procópio (Juiz de Fora – MG) realizou entre os meses de outubro e novembro de 2020 é um exemplo disso. Tendo como tema “Museus e memórias: costurando presente, passado e futuro”, o concurso teve como público-alvo professores de qualquer nível de ensino e estudantes de educação básica, com idade a partir dos 10 anos. Apesar de premiar apenas os três primeiros classificados de cada categoria (professor e estudante), todos os poemas foram declamados em vídeos postados nas redes sociais do Museu, por meio da participação de servidores do MMP e de pessoas atuantes no campo cultural de Juiz de Fora e região. O objetivo foi adensar e/ou reabilitar laços afetivos do público com a instituição, estimulando produções artísticas autorais sobre o tema proposto.
Escritos por professores e estudantes de diferentes faixas etárias, os poemas deixaram entrever variadas concepções de museu e evocaram memórias afetivas que ligam seus autores a diversos espaços e objetos museais. Alguns deles externaram seu repertório de nostalgias, trazendo para o presente um passado relido sob as lentes de um romantismo à Casimiro de Abreu: “Oh! Que saudades que tenho/ Da aurora da minha vida,/ Da minha infância querida/ Que os anos não trazem mais!”. Houve quem associou os museus a um passado de realeza, ambiente de “conservação” nos sentidos prático e político da palavra, em que os objetos contemplados são blindados ao toque de quem os observa. Outros explicitaram sua crença na história como “mestra da vida” e nos museus como espaços de consagração de “grandes feitos”, cuja missão é rememorar o passado para impedir a repetição de erros futuros. Por fim, houve ainda os que refletiram sobre a complexidade das narrativas e das memórias arraigadas nos objetos e espaços museológicos: de um lado, os que verbalizaram o entendimento de que as lembranças e os esquecimentos são escolhas e projetos; de outro, mas em sentido convergente e complementar, os que utilizaram a metáfora da trama de um tecido para conectar passado, presente e futuro a uma estrutura dinâmica e não linear. Afinal, é no entrecruzamento dos fios das temporalidades que se forma o “tecido” da história representada nos/pelos museus.
Esse concurso de poesia nos possibilitou, de alguma maneira, acessar experiências e memórias; e mais do que isso: nos permitiu estabelecer uma rede de interlocução de afetos com todos que dele participaram, direta ou indiretamente. Sabemos que isso, por si só, não é suficiente para desconstruir as tais “narrativas canônicas”, engessadas, que tentam aprisionar o público no lugar de “tábula rasa” do conhecimento. Porém, se um dos principais desafios dos museus é provocar reflexões, é plausível reconhecer que nada disso é possível sem uma prévia escuta/observação que aproxime o público para fomentar o diálogo. Mesmo quando o discurso contemplativo parece suplantar a reflexão, as memórias afetivas não deixam de transbordar imaginação, fantasia, encanto, mistério e, é claro, subjetividades.
A tarefa de pensar os museus como espaços de produção de conhecimentos científicos, munidos de ferramentas epistemológicas necessárias à análise crítica de seus objetos e narrativas, não deve e não pode dispensar a potência libertadora da poesia e sua capacidade de oferecer inúmeras possibilidades de experimentação da linguagem e de (re)apresentação dos objetos. Quem disse que poesia e ciência devem percorrer caminhos separados? Como numa fita de Möbius, é a partir de uma interdependente relação entre poesia e ciência que as memórias fluem e voam, que perspectivas, olhares e sensações se metamorfoseiam, que estranhamentos são gerados, que “camisas de força” são rompidas e que janelas se abrem para reflexões, conhecimentos e múltiplas vozes.
REFERÊNCIAS
CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras.In: HUNT, Lynn (org.). A nova história cultural. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado; RAMOS, Francisco Régis Lopes. (orgs.). Futuro do Pretérito: escrita da História e História do Museu. Fortaleza: Instituto Frei Tito de Alencar, 2010.
RAMOS, Francisco Régis. A danação do objeto: o museu no ensino de História. Chapecó: Argos, 2004.
Sérgio Augusto Vicente é Professor de História e historiador. Graduado, mestre e doutorando em História pelo PPGHIS/UFJF. Atualmente, trabalha no Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora – MG. Dedica-se a pesquisas relativas ao campo da história social da cultura/literatura, sociabilidades, trajetórias e memórias.