Acorrentados

Umas duas semanas atrás, em meio ao horário de almoço no trabalho eu me deparei com uma notícia chocante; fazia 20 anos que o SBT tinha realizado a casa dos artista, o clássico clichê de “após 20 anos, veja como estão os participantes da Casa dos Artistas”.

É de fato uma nostalgia das mais peculiares, afinal, naquela casa cheia de artistas, tivemos os barracos convencionais de realitys e outros mais, alguns que só estão sendo barracos hoje.

Talvez a casa não tenha acabado.

   – Não, essa não é uma coluna de fofoca ou de     curiosidades sobre realitys, peço que tenha esperança e fé diante do raciocínio deste jovem proletário com TDAH que vos escreve. –

A casa de fato não acabou, ela sempre existiu nos relatos de datas comemorativas onde juntamos as famílias, afinal, os barracos e dramas ali sempre foram cinematográficos. Mas se não o foram na sua família, com certeza você ficava sabendo dos relatos de alguns amigos quando você retornava à escola.

É curioso pensar na trajetória dos realitys no brasil, porque se formos avaliar, claro, da época que me entendo por gente, o primeiro programa nesse contexto de isolamento era o No Limite lançado pela Rede Globo (2000), logo depois tivemos o Acorrentados no Caldeirão do Huck (2001) e no mesmo ano um outro que veio na época a causar muito com sua proposta de pegar participantes “inusitados”, a A Casa dos Artistas lançada no brasil pelo SBT foi de fato uma proposta ousada e que em minha opinião não fazia tanto sentido em tê-la na época.

Prova disso é que a proposta de confinar famosos só ganhou força em um período de maior acessibilidade e voz a todo consumidor através dos telefonemas para votações, mas principalmente porque a internet proporcionou um acompanhamento em pay-per-view (pago ou pirateado) para todos que tivessem o mínimo de acesso a uma banda larga velox e outros concorrentes.

Evidente que o peso da transmissão da Globo era mais expressiva e gerava mais comentários no Big Brother, afinal o No Limite era um programa mais na linha das competições de programas de auditórios como o Domingão do Faustão e os que o originaram principalmente no continente asiático onde ainda se tem um grande apreço pelas competições diárias e semanais em programas de auditório, diferente das competições estadunidenses e européias que se baseiam em temporadas (cativar e gerar expectativa para a próxima temporada é um tato que aTV ensinou muito bem aos serviços de streaming e aos estúdios produtores de seriados).

Se existe uma identificação de nós os “reles mortais” diante das novelas, filmes, cantores, bandas e séries, esse evento de confinamento se assemelha então a uma construção de “esperança” para cada um de nós em alcançar um “Oto Patamar”.

O efeito é de opióide? Sim, mas de certa forma, nós, seres humanos, quando gostamos de algo, nos apegamos, queremos experimentar mais e mais. Seria correto afirmar que existem opióides bons e ruins? Talvez?

Refletindo um pouco sobre essas trajetórias, me lembro de ver pessoas criticando, como um programa que causaria a ruína da sociedade, algo que nos levaria à ruína civilizatória, lembro de igrejas e pastores fazendo campanhas contra esses programas e apenas alguns sensatos compreendendo que o programa, era um programa e não uma tentativa de algum grupo específico de destruir e dominar o mundo.

Pensando no formato e no quanto as pessoas gostam de acompanhar (confesso que vi as duas primeiras do BBB e algumas coisas de outras edições e programas, mas sempre procuro saber o que tá rolando) acho válido me atentar ao que tem fomentado discussões e reflexões sobre nossos comportamentos e posturas.

Alguns dirão que esses realitys não representam a sociedade, ok, posso concordar em parte, afinal, me parece que eles podem refletir em diversos aspectos, o que nós também sentimos no dia a dia e por vezes o que pensamos e fazemos também.

Esse não é o mérito em si da questão do texto, na verdade o que me prende nessa análise é entender o quanto a privação do outro nos é apetitosa em diversos graus, o cárcere que vivemos está aqui, nessas telas desses programas, nos nossos empregos, nos nossos relacionamentos sejam eles de qualquer instância.

Olhe bem, se entendermos que o poder de um Big Fone, se assemelha ao poder das estruturas governamentais e que nossos votos nas ligações e sites estão relacionados aos posicionamentos no legislativo e no executivo, tudo isso, é uma mera simulação do confinamento de todos nós.

 Entender que a privação seletiva e voluntária de alguns tem nos sido apetitosa, reflete o quanto pensamos sobre a estrutura política e também sobre o sistema prisional. Somos conduzidos diariamente a ter medo do governo, a temer a polícia, o estado nos enxerga como inimigos, inimigos que pagam tributos para que não nos levem ao cárcere.

Antigamente, havia o crime de vadiagem, ou seja, um crime para quem tinha tempo vago. O engraçado é que nas classificações do IBGE, podemos encontrar o termo “Vago” como pessoas sem emprego com CLT ou estudantes, isso nos diz sobre como o estado nos considera. Se você não é patriota, não adora a bandeira, a nação e não trabalha na formalidade, você é alguém que não contribui para a construção dessa nação.

É a mesma relação no BBB, nos tornamos o reflexo da mão do estado, julgamos quem não contribui para as equipes, colocamos abaixo e não repensamos o pós jogo.

Alguns participantes desses realitys conseguem continuar em voga e levar suas vidas, outros, estão num ostracismo, intencional mas por outras vezes,por falta de opção, porque são descartados.

Um relato angustiante relatado por Vicente Concilio em seu livro: Teatro e Prisão: Dilemas da Liberdade Artística,  o autor conta sobre sua experiência trabalhando ao lado de Jorge Spínola no Carandiru através do COC (Centro de Observação Criminológica) através das artes cênicas.

Dentro do Carandiru, haviam as detenções convencionais e o COC, lugar onde os sentenciados que recebiam tratamento especial do sistema, sobretudo por correrem risco de vida em um tratamento penal comum, encontram ferramentas que outros blocos não tinham, o acesso à educação, trabalho, reabilitação.

O projeto do COC era simples, Jorge Spínola apresentou textos teatrais e propôs dinâmicas inusitadas para que todos pudessem opinar sobre quais as peças seriam escolhidas para apresentar os demais individuos encarcerados ali no Carandiru.

Os textos de inicialização foram O Auto da Compadecida e A Pena e a Lei ambos de Ariano Suassuna e que colocaram a equipe teatral do COC – Carandiru em um patamar de subcelebridades.

Após o fechamento do Carandiru em 2002, parte da equipe se desfez, mas ainda com o trabalho sendo realocados para Penitenciária do Tremembé, José Spínola é convidado junto de sua equipe a apresentar um texto que havia tempos ensaiavam, O Rei da Vela de Oswald de Andrade para os participantes de um seminário realizado pelo IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) contando com mais de 200 participantes no luxuoso Hotel Maksoud Plaza.

O fato marcante é, após a belíssima apresentação, a platéia que com medo de qualquer reação, sentou nas fileiras do meio para os fundos do teatro, aplaudiu vagamente enquanto um forte esquema policial já invadia o teatro para algemar os atores antes mesmo do abaixar das cortinas.

O que brevemente entendemos? Que, independente do que façam, pessoas que foram presas por quaisquer coisa, jamais serão vistas como alguém novamente “limpo”, afinal, se um indivíduo paga sua pena, ela então está consumada, e diante dos demais, não deveriam haver vírgulas que os impedissem de galgar e ascender em quaisquer lugares que os fosse desejado.

Algo semelhante podemos ver nos processos que ocorrem dentro dos realitys, as pessoas que foram esquecidas, abatidas, estigmatizadas por quaisquer posturas, são devoradas pelo nosso senso de justiçamento, sem nenhum olhar pedagógico.

Cabe a pergunta final, um reality qualquer, deve continuar mesmo diante das violências verbais, psicológicas e até física (se ou quando ocorrerem)?

Não vimos tamanha acidez em outras edições e talvez por isso, precisamos como sociedade legislar sobre o confinamento de entretenimento? Deveríamos nos questionar sobre a necessidade de continuar com um evento ou se vamos acabar com ele e reorganizar novas diretrizes? O problema não é um reality A ou B, o problema está na continuidade de um deles mesmo diante de agravações seríssimas diante da violação do espaço de um indivíduo. Nos assemelhamos aos juízes que assistem pavorosos, distantes, com a força bruta ao seu favor ou nos posicionamos e buscamos a desconstrução e RECONSTRUÇÃO de programas que valorizem a vida, a diversidade, o indivíduo diferente?


Kariston França é amante de pizza. Palestrante desmotivacional, ex teólogo, professor, músico que já integrou um famoso grupo de pagode 90. Tenta seguir a vida escrevendo na Trama em mais seis projetos paralelos.


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