O B é de Biscoito? De Beyoncé? De BBB?

Amado, odiado, ignorado; fato é: em 2021, o BBB tem cumprido o papel de entreter a população durante a pandemia e, também, segue a tendência de 2020, ao pautar muitas das discussões sobre nossa sociedade — como se representasse um microcosmo da sociedade. E sim, podemos ver muitas das questões presentes no programa surgindo em nosso dia a dia – as quais, muitas vezes, ignoramos, passamos por cima ou não vemos.

Na festa ocorrida no sábado (06), uma grande discussão sobre sexualidade e, mais especificamente, sobre bissexualidade, tomou conta das redes sociais, por um simples beijo entre dois homens (algo que, infelizmente, ainda não é visto como normal ou natural). Desde que o alemão Kraft-Ebing, no século XIX, criou o Psychopathia Sexualis (mais precisamente, em 1886), o desejo sexual não-heterossexual passou a ser visto como uma “parestesia”, ou seja, um desejo sexual sobre um objeto errôneo e, portanto, uma patologia que precisava ser tratada, em nossa sociedade ocidental. Essencialmente, o que isso quer dizer é que as discussões sobre “sexualidades desviantes” extrapolam o âmbito da moralidade judaico-cristã e caminha para o campo da medicina moderna. O argumento sai do âmbito religioso e dos costumes, ganha força pseudocientífica e torna-se, assim, por anos, mais difícil de ser combatido.

Isso só passa a mudar quando a homossexualidade deixa de ser considerada um transtorno antissocial de personalidade, em 1973. Já são quase 50 anos desde essa conquista; porém, eles não são quase nada quando comparados a séculos de moralização – a qual parece, ainda, constituir até mesmo algumas pessoas do campo progressista (as quais não representam o todo, que fique claro).

A situação ocorrida na “casa mais vigiada do país” levanta uma discussão essencial: a bifobia, que foi praticada, inclusive, pelas pessoas bissexuais e homossexuais presentes. É importante lembrar que isso não invalida a causa LGBTQIA+ e nem a expressão de sexualidade de cada uma dessas pessoas individualmente; porém, torna-se necessário repensar a facilidade com que é possível deixar o discurso hegemônico reacionário contaminar nossas falas e reações.

Em nossa sociedade, não é incomum que se propaguem estigmas cruéis, agressivos e inverídicos sobre pessoas bissexuais: são indecisos, mais promíscuos, não confiáveis, apenas aliados de causa, entre outros. E quando falamos sobre bissexualidade masculina, isso se intensifica; pois enquanto a cultura da indústria pornográfica estendeu seus tentáculos para erotizar a mulher bissexual (que atire a primeira pedra aquelas que nunca ouviram “você gosta de ménage, né?” ao se assumirem bissexuais), o homem bissexual é visto socialmente como o “covarde que não quer se assumir gay, por vergonha”.

Alguns argumentos jogados contra Lucas, o rapaz inicialmente lido por todos na casa enquato heterossexual, para invalidar sua bissexualidade, foram: “ele fala da vida dele na casa o tempo todo, por que nunca falou sobre ser bissexual”; “existem [outras] formas de expressar sua bissexualidade”; “o beijo foi performance”. Todos eles mais do flertam com o conservadorismo, criando uma perspectiva engessada a partir das premissas que perpassam o ser LGBT ao ignorar todo um processo de autoaceitação e autoidentificação, para além de todas as dificuldades em assumir uma orientação não-hétero perante milhões de espectadores – entre os quais estavam milhares de pessoas conservadoras, prontas para sabatiná-lo em público, e sua própria família. Como ele mesmo disse, ele não sabia como a família lidaria com a situação.

Um momento que, talvez, pudesse ser libertador para Lucas – no qual sentiu-se à vontade para vivenciar seu desejo e sua expressão de sexualidade genuína -, tornou-se um tormento tão grande que foi o suficiente para que o brother desistisse do seu sonho. Simbólico que, após tantos episódios de violência e agressividade, a gota dágua seja o momento de ver sua liberdade sexual-afetiva ser colocada em xeque. E, mais uma vez, estamos trazendo o microcrosmo representativo de uma situação maior.

A bissexualidade ainda tem um local de ‘não-lugar’, um entremeio de passagem entre a heterossexualidade e a homossexualidade. Ser bissexual ainda é visto como “estar em condição bissexual”, e não “ser bissexual”. É transição, não identidade.  E se você não “é alguém”, como pertencer a algum lugar? O beijo ocorrido foi um “beijo gay”, como noticiam os veículos de imprensa – mais uma vez, o bissexual masculino torna-se invisível, como se um beijo tivesse orientação sexual, ignorando a autoidentificação dos envolvidos.

Sim, as expressões escolhidas em nossas narrativas são evidências de nosso olhar sorbe o mundo. Um beijo, um relacionamento, um ato sexual, não é “homo”, “hétero” ou “bi”. A orientação sexual não se modifica de acordo com o tipo de relação existente. Mais uma vez, o “B” torna-se de “Biscoito”, ignorando que o indivíduo permanece bissexual, independentemente de contexto. Novamente, é “estar”, e não “ser”.

Ainda quando falamos em condições de vulnerabilidade (preto periférico, como o próprio Lucas se pronunciou, um beijo em outro homem poderia modificar a forma como é visto em sua “quebrada”), há uma série de questões que influenciam na autoaceitação. Afinal, quem toma pedrada na cara todo dia, muitas vezes, prefere não assumir sua orientação por medo de sofrer mais violência. E o que vimos, diante da escolha do rapaz em se assumir publicamente, foram agressões e mais agressões – como se nenhuma das pessoas LGBTQIA+ da casa não tivessem passado isso anteriormente, ou vivenciassem essas questões até hoje. Ironicamente, a invisibilização e violência acerca da sexualidade de um dos membros da casa ocorre quando, após 21 edições, se dá o primeiro beijo entre dois homens no programa. Empatia é, também, estender uma escuta ativa e acolhedora. Falta ainda muito estender esse tipo de mão para muitos dos presentes na sigla (Bissexuais, Intersexo, Assexuais, Panssexuais, entre outros).

Apesar de todas as críticas aos participantes envolvidos no caso de bifobia, relembremos: ainda é um microcosmo de algo maior que muitos vivenciam longe dos holofotes da “casa mais vigiada do país”. Podemos ser vítimas e algozes de violências semelhantes, em maior ou menor grau. Por isso, faço um convite a você que chegou ao final deste artigo, a repensar possíveis microviolências que cometemos no dia a dia sem perceber. Esse, talvez, seja o legado a ser tirado desse show de horrores.


Luciana Rodrigues é doutoranda em Ciências Humanas e Sociais e defensora de uma educação sexual consistente e responsável. Idealizadora do projeto Hacking Sex (Medium e Instagram).


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