estavam três horas e quatro minutos no relógio de um nokia cinza madrugada tela azul não tava na mesinha ou não tava como eu deixava seu rastro nítido ali sua desconfiança ativa vi isso depois de cruzar a sala os quadros que te dei e um penduricalho de fitas tudo jogado no chão ou disposto no meio exato da sala essa fogueira que cê preparou mas não acendeu, não queimou ardeu só de ser pensada e foi montada todo gesto de afeto que tentei fazer te envolvendo as paredes da sua casa cê fez um totem da iminência do fim, mas não acabamos as datas estavam atropeladas pelo seu tempo que estava espezinhado pela sua confusão assim atormentada pelos vinte e quatro ou nove anos seus ou um ano e oito meses da gente sem descontar outro tempo que estava espezinhado pela sua confusão também e quase sete meses da gente descontando uns três meses de uma paixão construída por sms duas refeições, meio pote de sorvete e um abraço de corpo inteiro de nucas e barrigas coxas e braguilhas até que cê gozou na calça sem nem ter tirado a minha e daí? foi muito bom um começo e você sempre voltou até que fui iam fazer dez anos, mas chovia tanto a crepioca estava insossa, só o tempero da dúvida ou de um jogo estranho na sua voz acho que na minha, e nos olhos foi ficando abafado, cê me quis sem roupa escrutinou todo meu corpo, que mudou tanto até que nos tocamos úmidos de chuva e suor, seu cheiro, de corpo, o sal do pescoço, algo fermentando perto das virílias, e metálico seco nos sovacos, e seus pelos me roçando toda superfície da pele da lembrança nada disso mudou fomos juntos pra ilha de uma memória isso durou todo um fim de tarde, noite e manhã depois fiquei eu com meus óculos empenados e tudo, de novo, pareceu tão tolo, fogo-fátuo como a guerra contra o Paraguai - por que fizemos aquilo?
’24 de Maio’ é o primeiro poema que trago a público. A imagem de capa que escolhi para ele é uma fotografia que fiz (com meu celular) em 2018 quando visitava o Museo Nacional de Artes Visuales do Uruguai, em Montevidéu. Enquadrei um canto do quadro “La Paraguaya” pintado à óleo sobre tela pelo artista uruguaio Juan Manuel Blanes, em 1879. A referência se faz óbvia diante do fato histórico que representa e da referência direta a ele no meu poema, mas é uma obviedade íntima; talvez se agregue o valor de trazer para o imaginário ‘brasileiro’ um outro ponto de vista sobre o mesmo fato trágico, e por trazer uma figuração de dor íntima, que diz da dor de todo um país, seu povo, sua memória. Segue uma boa reprodução da pintura na íntegra (disponibilizada por Wikimedia Commons).
Tálisson Melo é Artista-pesquisador. Doutorando em Sociologia e Antropologia na UFRJ. Publicou o livro “Mesmo Sol Outro” com Carolina Cerqueira (2018). Atualmente trabalha em projetos curatoriais-editoriais e de pesquisa em Montevidéu, Juiz de Fora e Nova York – emaranhando artes visuais, poesia, design, arquitetura, cinema, história e ciências sociais. @talisson.melo @mesmosoloutro