PARA QUE(M) GRADUAMOS?

Antes de ingressar na graduação de Psicologia, eu já tinha feito algumas escolhas. Dentre elas, a minha preferida: sabia exatamente qual era o tipo de sapato que eu usaria no meu dia-a-dia de trabalho. Saltos altos e grossos. Nos primeiros dias de aula, descobri que outros pés também pareciam ter sonhado o mesmo que eu. Os corredores ecoavam os tec-tec-tec, anunciando o início do turno. Saltos finos, saltos mais altos e saltos plataforma mapeavam o chão até as salas e silenciavam até o horário do intervalo.

Uns tempos depois, já exausta da rotina acadêmica, comecei a me incomodar com as sonoras pisadas da Psicologia. Passei alguns minutos sentada ali, ao lado da porta da sala, após o esvaziamento auditivo. Observando o chão recém encerado, percebi que scarpins não andam em qualquer piso. Provavelmente estão bastante habituados aos prédios modernos do centro da cidade e não chegam a apertar calcanhares porque não percorrem mais do que o caminho até as garagens. Certamente não conhecem os ônibus no horário das seis ou as calçadas das periferias.

Grande parte da literatura da graduação também anda a passadas sonoras, caríssimas e europeias. São teorias que dizem de pessoas que também fazem tec-tec-tec quando caminham. É para elas que aprendemos o que aprendemos, que nos formamos e que prestamos nossos serviços a alto custo. Porque mesmo que esses caminhares não sejam conteúdo nos slides, são ensinados. Não é à toa que os saltos nunca saem de moda entre as pessoas recém formadas. Pelo contrário: estão em alta no mercado. É um projeto quase perfeito.

Do mesmo corredor barulhento e bem encerado, por entre as caminhadas, ao primeiro sinal de silêncio, questiono: para quê essa graduação? O que chega onde esses sapatos não conseguem chegar? Veja você mesma, me sussurram as paredes. Enquanto ainda não estamos em cima dos saltos — ou caso ainda consigamos descer deles —, podemos ir até lá para ouvir e ver com os próprios pés. É possível e preciso sair pela cidade, pedir licença para chegar nos bairros, nas ruas e nas vilas, para deixar as solas aprenderem. É preciso territorializar a formação: porque é o chão que caminharmos durante esses anos que trilharão os caminhos adiante.

Para falar das outras realidades — aquelas que Freud não conheceu — é preciso ir do centro à margem, dos consultórios aos postos de saúde, das avenidas às varandas das casas. É matéria obrigatória observar as praças, os bares e as escolas das regiões que não aparecem nos livros. O que se aprende na faculdade é uma parte das possibilidades.

Por vezes, a Academia glamouriza o saber. Enfeita de saltos altos, anda em carros importados e ocupa os melhores bairros da região. Mas, se fizermos silêncio o suficiente, talvez ouçamos as fissuras convidarem a outras maneiras de caminhar. Para que seja o andar da emancipação, é preciso escuta: Alguns conhecimentos não estão escritos de acordo com as normas ABNT e não são submetidos às revistas científicas. Entretanto, seguem curando, cuidando e transformando. Quase passa despercebido o quanto o saber popular é potência ativa de mudança social. E para conhecê-lo, articulá-lo e facilitá-lo, é preciso aprender a andar com pés descalços. A terra dirá o caminho.


Fernanda Zeloschi é estudante de Psicologia e, quando ninguém está olhando, escreve e compartilha seus questionamentos e descobertas na página @fazerafetar.


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