A melancolia é o repúdio ao luto
– Judith Butler
Há de se refletir sobre a volta que o Brasil deu até chegar (ou retornar) ao marco zero de enfrentamento à pandemia após quase um ano de sua eclosão. Se esquivar da análise do que foi e está sendo o real da pandemia ainda é plenamente justificável quando entendemos que acontecimentos desta dimensão escapam à capacidade de elaboração histórica imediata – se trata de um trauma civilizacional que só compreenderemos daqui a algum tempo (retroativamente). Do ponto de vista político e social, no entanto, não há recuos possíveis: há uma forçosa urgência quando a câmara de gás a céu aberto chamada Brasil atinge a marca de pouco mais de uma morte por minuto, ou mais de dez mil mortes em uma única semana. Não acredito que já tenhamos passado por tudo o que poderíamos; a crise de gestão não nos permite dizer o contrário. Mas creio que algo pode ser semi-dito.
Podemos falar do luto e da perda como dinâmicas próprias a contextos de morte generalizada como esse, ainda que fatores específicos surjam como supressão dessas experiências que, por definição, são subjetivas e dizem respeito ao laço social que nos funda. Contudo, proponho que façamos um excurso pelo avesso do sentimento de luto, i. e., pensar se a recusa consciente do luto também consiste em obedecer a alguns padrões semelhantes, como no caso de uma perda inconsciente (melancolia). Aqui, isso implica pensá-lo criticamente sob sua modalização ideológica, tentando perceber como (e se) certo tipo de consciência nacional frente ao vírus passou por um processo idêntico, sob a hipótese de que a experiência de perda provocada pela pandemia tenha decomposto versões ruins face ao mesmo fenômeno.
Tomemos, pois, o modelo da psiquiatra Elizabeth Kübler-Ross que delineia um processo de cinco estágios da confrontação com a perda (ex. quando recebemos a notícia de uma doença terminal ou da morte de um ente próximo): (1) negação (“isso não pode estar acontecendo comigo”); (2) raiva (“por que isso está acontecendo comigo?”); (3) barganha (“se pelo menos puder ver meu filho casar, não pedirei mais nada”); (4) depressão (“já estou morrendo mesmo, nada posso fazer”); (5) aceitação. O esquema de Kübler-Ross já foi redescrito por outros profissionais e também relativizado em razão de que não é necessária a passagem por todos os estágios nem na mesma sequência; mas usar desse modelo pode auxiliar na visualização de algumas incorrências tácitas do apocalipse.
Negação ou: “é só uma gripezinha”
Esse primeiro momento é extremamente ideológico e mágico, pois o sujeito se recusa a aceitar os fatos. Os esforços em produzir narrativas que obliterassem o sofrimento e a vulnerabilidade dos corpos, bem como a dimensão real (e Real) do vírus, acabou por viralizar toda espécie de xenofobia, desinformação, descaso social e paranoias conspiratórias, onde o próprio status da pandemia era duvidado. Não é à toa que os recursos mítico-religiosos ganharam forte adesão social¹.
Raiva ou: “e daí?”
Quando não é mais possível negar diretamente a realidade, a reação inflama e cede a um sentimento mais aflorado de revolta. Aqui é onde a crueldade se mostrou mais explícita e a mortalidade foi tomada como inerente à salvação do mercado². O gozo com a morte do outro veio à tona revelando o desdém próprio do poder soberano. Fazer morrer e deixar viver – eis a necropolítica.
Barganha ou: “tem medo do quê? Enfrenta!”
Aqui é quando o sujeito precisa propor algo sob a forma de uma negociação, na tentativa de minimizar o caos e suprir com alguns objetos parciais os buracos que ficam impossíveis de encobrir. Cloroquina e ivermectina foram as marcas da propaganda e do investimento. A negação científica foi estetizada.
Depressão ou: “eu não consigo fazer nada”
A formulação lacaniana de que o afeto depressivo resultaria de uma covardia moral (lâcheté morale) foi anunciado em sua versão cínica: não só a gravidade e as mortes pelo coronavírus foram normalizadas, mas até mesmo as possibilidades de contenção perderam sua tensão necessária. Resta admitir a incompetência e se afundar na mornidão – que é a mesma coisa que entregar à morte.
Aceitação ou: “para a mídia, o vírus sou eu”
Esse ponto necessitaria um recuo. Geralmente a aceitação faz parte da simbolização da perda ou da retomada de uma atitude que reconstrua nosso campo de possibilidades, o que não parece possível aplicar ao nosso objeto de análise.
Creio, junto com Judith Butler³, que o luto signifique concordar em passar por uma transformação que destitua nosso antigo sistema de afetos. Aceitar o luto é assumir nossa dependência mútua, a responsabilidade ética incondicional que nos constitui. Talvez esse seja nosso desafio imediato.
REFERÊNCIAS
¹Ver mais em: DOS ANJOS, F. & MOURA, J. L. Contágio Infernal: o apocalipse bolsonarista-evangélico. Editora Recriar (2020).
²Para uma leitura sobre a relação entre o pacto social neoliberal brasileiro e a desumanização, ver SILVA JUNIOR, N. O Brasil da barbárie à desumanização neoliberal: do “Pacto Edípico e pacto social”, de Hélio Pellegrino, ao “E daí?”, de Jair Bolsonaro (2021) In: Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico (org. SAFATLE; SILVA JUNIOR; DUNKER).
³BUTLER, J. Vida precária: os poderes do luto e da violência (2019).
Micael Correia tem 22 anos e é um escritor não-autorizado. Faz graduação em Psicologia e nutre interesse por Psicanálise, Cultura e Religião.