Nós não somos “sonhadores”.
Somos o despertar de um sonho
que já se tornou pesadelo.
– Slavoj Žižek, durante a manifestação
“Ocupem Wall Street” em outubro de 2011.
No romance “Terra Sonâmbula”, o escritor moçambicano Mia Couto aborda a consequência devastadora da guerra civil em Moçambique. O romancista narra o estado dos sobreviventes acometidos traumaticamente pela morte de familiares e conhecidos do povoado a partir da metáfora do sonambulismo: aquele povo se encontrava encapsulado numa dimensão onírica (sonho), presos a uma espécie de indiferenciação entre estar acordado e estar dormindo, elevando ao grau máximo a solução entre o sonho e a realidade. Tal dimensão de sonambulismo só poderia ter sido aprofundada pela violência insuportável sofrida pelo assalto do passado, o furto do futuro e, consequentemente, da indeterminação do presente, condenando-os à uma experiência de paralisia psíquica.
Lembremos que a teoria da interpretação de sonhos em Sigmund Freud já houvera sido modificada por ocasião da análise de sonhos dos neuróticos de guerra, pois, conquanto a tese inicial de Freud a respeito dos sonhos implicava que eles fossem a realização (alucinatória) dos desejos inconscientes¹, podendo ser “interpretável”, a clínica com os soldados remanescentes da guerra demonstrava que haveria nos sonhos uma repetição das vivências traumáticas – sendo, portanto, cenas manifestadamente indesejáveis -, relativizando a ideia de que o trabalho de interpretação conduziria à verdade do desejo do sujeito.
Pela primeira vez na teoria freudiana, situada mais especificamente no texto “Além do princípio do prazer”, essa “experiência alucinatória inofensiva” chamada sonho, como dizia Freud, cedia espaço a um outro tipo de qualidade de experiência, uma que remetia a um trabalho de sonho intraduzível, indecifrável, uma falha estrutural na tentativa transmutação do episódio traumático em realização do desejo. Podemos dizer que: se num primeiro momento os sonhos eram tomados como vias régias aos códigos do desejo, nesse segundo momento os sonhos colocavam o sujeito frente à sua angústia, como uma “pulsão aflorante da fixação traumática”².
Não é de hoje a preocupação de pesquisadores com a temática dos sonhos em tempos excessivos como ditaduras e guerras, como também eventos significativos do ponto de vista histórico e social, que inclui o caso da pandemia que estamos vivendo. Desde a pesquisa seminal de Charlotte Beradt sobre os sonhos dos alemães no Terceiro Reich, que mostrava testemunhos sobre a antecipação inconsciente do que viria a ser o estado nazifascista alemão a partir do relato de sonhos, a importância de se registrar o que as pessoas têm sonhado, sobretudo em momentos de crise política e social, confere uma postura outra em relação aos sonhos, dando-lhe a qualidade de uma literatura testemunhal.
O contexto brasileiro de pandemia não nos excluiu dessa tarefa. Paulo Endo, psicanalista e professor universitário (USP) é um desses pesquisadores que têm se interessado por reunir relatos de sonhos no Brasil. Em uma de suas apresentações mais recentes, Endo relata o sonho de uma entrevistada durante o período entre o primeiro e o segundo turno das eleições de 2018, no qual a narrativa de morte, acompanhada pela figura do leiteiro assassinado do poema de Drummond, aparecia escrita com muitos símbolos de cruz (†) entre os espaços das palavras. Mal sabíamos que fotos com milhares de túmulos e a realidade de tantas mortes comporiam o cenário que mais se repetiria durante uma gestão genocida da pandemia. Nesse sentido, podemos falar de um caráter premonitório dos sonhos, para mais além de sua qualidade fixatória.
O risco paralisante dos contextos violentos – entre os quais o Brasil de 2021 não escapa – é perene. Pois o objetivo da coação genocida não é simplesmente a neutralização das linguagens da não-liberdade, que nos impediria de enunciar nosso sofrimento e revolta, mas a imposição de um estado de sonambulismo em que permanecemos presos a um sonho, acreditando estarmos acordados. É por isso que, se os sonhos contêm, para além da repetição traumática, uma potência premonitória, é devido ao fato de que ele “esgarça as fronteiras do pensamento até que dali brotem pensamentos inéditos, imagens inéditas e palavras inéditas, fazendo surgir novas nomeações”³. Não porque prevê o futuro, mas porque aprofunda o presente. Daí que podemos nos alinhar à postura anti-freudiana de Jacques Lacan. Freud dizia que os sonhos eram os “guardiões do sono”. Em Lacan, essa máxima se subverte: os sonhos, na verdade, fazem despertar. Enquanto alguns querem que durmamos e vivamos num pesadelo, façamos uma inflexão: sonhemos; porém, não para fugirmos, mas sim para despertarmos para o presente – mesmo que o despertar absoluto signifique a morte.
REFERÊNCIAS
¹Tese apresentada em A interpretação dos sonhos (FREUD, 1900).
² FREUD, S. (1932-1936) Novas Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise e outros trabalhos. Conferência XXIX: Revisão da teoria dos sonhos. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud., v. XXII
³ Paulo Endo em “Aula aberta Sonhar a Democracia com Denise Mamede e Paulo Endo”, disponível no Youtube.
Micael Correia tem 22 anos e é um escritor não-autorizado. Faz graduação em Psicologia e nutre interesse por Psicanálise, Cultura e Religião.