Se engana quem pensa que o racista brasileiro tem carteirinha. Não é assim. Mas, infelizmente, não dá pra dizer que “ninguém no Brasil aceitaria ter uma carteirinha de racista”, porque várias imagens de manifestações mundo afora sugerem que muita gente aqui curtiria uma identificação assim. Aliás, há uma instituição ainda ativa nos EUA que oferecia – e talvez ainda ofereça – carteirinha de racista a seus afiliados. O nome dela é Ku Klux Klan (também chamada de “KKK”, mas isso não tem graça nenhuma), e ela tem muitos fãs no nosso país.
Acho que, em geral, no Brasil, as pessoas assumem comportamentos e falas racistas sem nem se darem conta – mas isso não serve de desculpa, é claro! Estranhou um negro com um carrão novo, lindo? Racismo. Confundiu o médico negro com o motorista da ambulância? Racismo. Achou que a senhora negra na portaria do prédio era faxineira esperando alguém? Racismo. Fechou a janela quando a criança ou o adolescente preto se aproximou do seu carro no semáforo? Racismo. Sim: se você que está lendo esse texto já fez alguma dessas coisas, você já foi racista pelo menos uma vez na vida. “Errou feio, errou rude”.
“Ah, Luciano… Aí não, né? Vou deixar me roubarem primeiro? Muitos desses moleques ficam esperando no sinal pra roubar a gente”.
Esse é um exemplo clássico do racismo mais frequente e mais duro de combater: aquele que parece sustentado pela lógica, pela estatística, mas que não passa de uma meia verdade, ou, como se fala no Rio de Janeiro, um “caô”.
A metade verdadeira dessa ideia é o fato incontestável de que acontecem, mesmo, muitos assaltos em semáforos, e que, muitas vezes, quem os pratica são crianças e adolescentes pretos. A metade falsa é relacionar o comportamento criminoso de alguns indivíduos à cor da pele da maioria, deixando de fora a condição histórica e econômica que empurrou a todos eles para aquela situação. Além disso, também precisa entrar nessa conta o seguinte: pensando direitinho, se todo mundo lesse os contratos bancários que assina, veria que eles, os bancos, enganam e roubam muito mais gente que os meninos nos faróis, com muito mais frequência, provocando um prejuízo muito maior a longo prazo, e eu não me lembro de nenhum dono de banco que seja preto – se há, é exceção. Logo, fechar a janela com medo de perder dinheiro pro suposto ladrão preto e abrir o bolso pro assumido gatuno branco, é, noves-fora, racismo.
E aí está o motivo de eu dizer que, na minha opinião, a maior parte das pessoas no Brasil é racista sem nem se dar conta – e isso não as desculpa, repito. As mesmas pessoas que dizem, sem nenhum constrangimento, que precisam tomar cuidado com seus pertences nos semáforos porque algum marginal pretinho pode vir lhes roubar, essas mesmas pessoas não se dão conta de que banqueiros pretos, se existem, são absoluta exceção, assim como no Brasil também são exceções engenheiros, dentistas, advogados, arquitetos e médicos pretos. Tudo isso é prova incontestável do chamado “racismo estrutural” brasileiro, que mantém os pretos sempre em desvantagem. Todos, todos os índices sociais brasileiros são desfavoráveis à população negra.
O racismo brasileiro é chamado de “estrutural” justamente porque, por aqui, ele é tão fundido com a maneira como a gente enxerga a gente mesmo e o nosso próximo que a gente sequer se dá conta de que está sendo racista e perpetuando o funcionamento racista do mundo à nossa volta. A gente se acostumou a achar natural ter medo da criança e do adolescente preto no sinal de trânsito, tanto quanto se acostumou a achar natural entrar num hospital e não ver nem um médico ou médica preto/a. O racismo estrutural nos cegou para o fato de que infelizmente, quase 133 anos depois da suposta abolição da escravidão (que “Não veio do céu, nem das mãos de Isabel”, como disse o samba da Mangueira, em 2019), a população nas prisões e nos manicômios brasileiros ainda é negra em sua maior parte, fato que também se repete na maior parte das comunidades carentes de tudo nas nossas cidades médias e grandes.
Entender o mínimo sobre o que é o racismo estrutural brasileiro é indispensável para a gente começar a efetivamente mudar esse estado de coisas horroroso, vergonhoso, perverso e que não faz bem a ninguém. Isso mesmo: ninguém se beneficia com o racismo. Quem é vítima dele, se sente injustiçado, humilhado, violentado; quem o pratica, sabendo ou não, vive com medo – ainda que não perceba.
Luciano Nascimento é mangueirense, filho, marido, pai, professor, flamenguista, psicopedagogo… mais ou menos nessa ordem. É, também, idealizador do projeto Dê Efiência.