Você conhece o termo “epistemicídio”?
Apesar de próxima do termo “genocídio” (que estamos lendo com tanta frequência), a palavra epistemicídio só apareceu em minhas leituras mais recentes – e prontamente chamou minha atenção.
Se buscarmos entender e contextualizar o termo por sua origem, muitos poderão dizer que se trata da morte do conhecimento – o que é verdade. Mas para que a questão se aprofunde e para que não façamos o mau uso desse termo tão importante, proponho uma análise mais ampla: que tipo de conhecimento está morrendo?
O conceito de epistemicídio é do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, que, ao tratar da questão da expansão europeia e da colonização, pontuou o seguinte: “eliminaram-se povos estranhos porque tinham formas de conhecimento estranho, e eliminaram formas de conhecimento estranho porque eram sustentadas por práticas sociais e povos estranhos”. A autora brasileira Sueli Carneiro também desenvolveu estudos sobre o tema, e nos ensina que o epistemicídio é um verdadeiro processo de assassinato, pelo grupo racial hegemônico, de saberes dos povos negros e indígenas, como uma política de genocídio e dominação.
E por que ele é tão grave, tão perigoso? Justamente por ser mais vasto e frequente que o genocídio, uma vez que ocorre sempre que se pretende subalternizar, subordinar, marginalizar, ou ilegalizar práticas e grupos sociais que poderiam constituir uma ameaça à expansão do grupo considerado superior (a epistemologia branca, europeia, cristã e heteronormativa, por exemplo). É um movimento contra a história dos trabalhadores, dos indígenas, dos negros, das mulheres e das minorias em geral (étnicas, religiosas, sexuais); assim que o epistemicídio costuma ser considerado como “a morte antes do tiro” ou “a morte da mente antes do corpo”. Quando silenciamos as epistemologias, os saberes de parteiras, de povos originários, a prática médica de povos colonizados e impomos uma epistemologia universal, nós estamos literalmente silenciando esses sujeitos e desqualificando suas histórias.
A inviabilização de saberes não-hegemônicos nos encontra desde bem cedo: quando aprendemos História no ensino fundamental, muito se fala do Ocidente e seu desenvolvimento, enquanto o Oriente aparece como lugar de passagem. Aprendemos sobre as grandes conquistas europeias e nada sobre os reinos africanos. Lemos que os povos indígenas trocavam, negociavam terras e riquezas por quinquilharias, e não que tiveram seus corpos explorados, violados e escravizados.
A forma principal em que a morte simbólica desses povos se materializa é através do apagamento de referenciais dos saberes africanos, afro-brasileiros, ameríndios e afins. É uma representação clara de nossos preconceitos e do racismo estrutural na produção intelectual, responsável por negar a capacidade dos povos não brancos de produzir saber.
Para estudiosos do tema, como Djamila Ribeiro, a epistemologia dominante seria aquela imposição de um conhecimento universal que reflete os interesses políticos e econômicos específicos do grupo social dominante – geralmente de uma sociedade branca, colonial, patriarcal e cristã. Mas não é só isso: essa sociedade é quem estaria produzindo o conhecimento considerado como “verdadeiro”. Esse processo resulta não só na desqualificação de conhecimento dos povos dominados, mas também na desqualificação coletiva e individual desses sujeitos enquanto sujeitos que pensam.
E o que o epistemicídio faz na prática é um estrago grotesco: o embrutecimento das pessoas que estão fora do grupo dominante faz com que a ascensão social delas fique cada vez mais distante. O sistema é programado para absorver esses indivíduos como mão de obra mais barata, para trabalhos mais rústicos, ou para mero entretenimento e aparição no meio artístico ou esportivo (os que têm sorte), enquanto os demais caem no desemprego, na marginalidade, ou em outras esferas em que seus corpos são alvos fáceis para serem exterminados.
E qual seria um caminho inicial para quebrar esse ciclo? Ora, seria preciso desestabilizar e transcender a autorização discursiva branca, masculina cisgênera e heteronormativa. A partir disso, debater como as identidades foram construídas nesses contextos.
A exclusão de corpos subalternizados dos espaços de poder político e econômico é apenas resultado de um processo de exclusão que começou lá atrás, nos espaços de produção de conhecimento. No caso do Brasil, em especial, é até difícil mensurar o quanto as coisas seriam diferentes se valorizássemos os saberes das mulheres de terreiro, dos indígenas, das Babalorixás, das mulheres do movimento de luta por creches, das irmandades negras, dos movimentos sociais encabeçados pela comunidade LGBTQIA+, entre tantos outros. Torçamos para que esse movimento seja feito a tempo, e que pessoas brilhantes, como foi Carolina Maria de Jesus[1], passem a ser lidas, respeitadas e apreciadas enquanto ainda estão vivas.
[1] Carolina Maria de Jesus foi uma escritora negra, mãe, catadora de papel, moradora da favela e com pouquíssima escolaridade formal. No dia 25 de fevereiro de 2021, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) concedeu a Carolina o título de Doutora Honoris Causa, reconhecimento oferecido a pessoas com contribuições decisivas para a arte, a ciência e a cultura brasileiras. A autora morreu em 1977.
REFERÊNCIAS
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pelas mãos de Alice (1995).
BORGES, Pedro. Epistemicídio, a morte começa antes do tiro. Alma Preta. Disponível em: <https://almapreta.com/sessao/cotidiano/epistemicidio-a-morte-comeca-antes-do-tiro>.
SILVA, Vinícius da. Perspectivas conceituais: o que é o epistemicídio? Disponível em: <https://viniciuxdasilva.medium.com/perspectivas-conceituais-o-que-%C3%A9-epistemic%C3%ADdio-70267bd3954>.
PESSANHA, Eliseu Amaro. Do Epistemicídio: as estratégias de matar o Conhecimento Negro Áfricano e Afrodiaspórico. Disponível em: <https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/problemata/article/download/49136/28617/>.
Déborah Silva é advogada, especialista em Direito Constitucional e pós graduanda em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global.