“A resposta de La Boétie [sobre a servidão voluntária] é terrível: consentimos em servir porque também esperamos ser servidos. Servimos ao tirano porque somos tiranetes: cada um serve ao tirano porque deseja ser servido pelos demais que lhe estão abaixo (…) A servidão é voluntária porque há o desejo de servir, há desejo de servir porque há desejo de poder e há desejo de poder porque a tirania habita cada um de nós e institui uma sociedade tirânica, ou seja, a tirania não se encontra no topo do social, mas espalhada por ele e a crueldade se espalha por toda a parte. A covardia se manifesta na crueldade física, psicológica, moral e política com que cada um deseja esmagar e exterminar quem recusa a tirania.” (CHAUÍ, 2021, p. 3)
Partindo de uma sinalização dos conceitos de biopoder e biopolítica em Foucault, pretendo discutir hoje sobre o corpo político – ou, nesse momento, sobre a sociedade tirânica que firma e amplia desejos e pretensões que refletem, por exemplo, as decisões de quem a governa. Nesse sentido, há também de se dizer que: quem governa essa sociedade carrega em si um símbolo atribuído de sintomas sociais.
Há uma série de crenças silenciosas que precedem as nossas expressões. A ‘neutralidade’, por exemplo, em face à oposição que muitos entendem como polarização, recorre a dispositivos pré-concebidos e internalizados – e, por isso, é uma afirmação vazia, que não contrasta com as disposições de se ter uma postura ‘crítica’ ou ‘equilibrada’ quanto ao cenário político, sobretudo se levarmos em consideração o conceito de ‘política’ em Weber, a rigor, relações de poder no Estado e, também, para além dele, na vida cotidiana.
Donna Haraway, em um dos seus estudos sobre feminismo, desenvolveu o conceito de “conhecimentos situados”, onde reivindica a não-ocultação dos momentos, lugares e estatuto social dos indivíduos que produzem saberes e práticas, sendo essa mais uma tentativa de definir com maior precisão a objetividade do conhecimento permitindo um olhar reflexivo sobre o intérprete, o que produziria certo engajamento na lente daquele que desenvolveu um determinado tipo de conhecimento. Esse é também um esforço de recorrer ao ambiente que nos circunda e que permite a construção de crenças internas as quais se inserem diretamente em todo tipo de expressão — pública ou não — de um indivíduo subjetivo. Reafirmo: todas as nossas expressões são resultado de uma série de crenças silenciosas. Mais do que isso, considero que o indivíduo não é um self-made de si; ao contrário, ele é perpassado por um conjunto de espaços que produzem certo tipo de sociabilidade, portanto, ações em interações, posturas desenvolvidas dentro de relações, enfim.
Os símbolos construídos em sociedades democráticas precisam de um certo tipo de sustentação para que sejam eleitos e alcancem o poder atribuído às cadeiras representativas do Estado a níveis municipais, estaduais e federais. Nesse sentido, há de se pensar que é necessário um corpo político e socialmente pactuado que age sob a direção de pressupostos políticos – e, nesse conjunto, podemos considerar as pautas que são erguidas sob alegação de serem ‘valores religiosos’ (de cunho mais conservador). A proposta de La Boétie aponta para uma perspectiva de servidão voluntária que se justifica na espera (daquele que serve) de ser também servido.
Ao pensar em uma parcela da sociedade acordada em torno de princípios que buscam a supressão do direito do Outro de viver — em pleno exercício de seus direitos inalienáveis —, se destacam os alicerces deste acordo tirânico que busca a introdução de um ‘inimigo objetivo’, como discute Hannah Arendt; afinal, isso é muito mais decisivo para o funcionamento deste corpo do que a definição ideológica por categorias, pois o ‘inimigo objetivo’ passa a representar aquilo que é contrário à política de um governo, sendo, portanto, um ‘portador de tendências’. À vista disso, prova-se as últimas rodadas de eleições no Brasil, sobretudo as presidenciais em 2018. O que se elegeu foi um símbolo que diversificava o discurso entre ‘metralhar a oposição’ e a citação bíblica de João 8:32, ‘conhecereis a verdade e a verdade vos libertará’. A verdade, outrora atribuída a figura d’O Cristo, serviu como propaganda política que cimentou, num mesmo grupo, pastores e milicianos. Na perspectiva do presente ensaio, é possível refletir que a cola social diz da natureza dos valores atribuídos aos símbolos (ou ao símbolo) no período eleitoral; assim sendo, os valores usados como justificativas são essencialmente tirânicos por serem movidos à cólera e à crueldade exibidos em signos de força ou em atos moralmente covardes enquanto são marcados, assumidamente, na contramão de uma sociedade justa e igualitária. Como discute Chauí, nesse tipo de sociedade, as leis são armas para preservar privilégios enquanto, para as camadas populares, significam repressão. O Outro, ainda segundo Chauí, não é lido como um sujeito, muito menos um sujeito com direitos; comento que esse mesmo Outro é tido como aquele que precisam silenciar, oprimir e marginalizar sob ataque contínuo por ter sido eleito aquilo que representa a oposição do governo vigente – portanto, um ‘inimigo’.
O destaque vai para a política de fidelidade que se desenvolve a partir da tirania. Arendt irá cunhar o conceito de ‘banalidade do mal’ para explicar, em linhas gerais, essa interação dos sujeitos com sistemas de violência, figuras que usam da violência para a dominação social, enfim. ‘Banalidade do mal” consiste na recusa do homem de fazer o exercício da reflexão, é a negativa do pensamento o que o afastará da responsabilidade de suas ações. Exemplo seria a justificativa dada por Adolf Eichmann em seu julgamento: usando de narrativas vazias e redundantes, o nazista justificava suas ações apenas como ordens que lhe foram dadas e, nesse sentido, seria algo como “assassinei porque mandaram; torturei porque mandaram“, etc. A fidelidade que se desenvolve neste pacto tirânico é extremamente perigosa, pois já não há base ética que indague o conjunto de ações que se desenvolve no corpo político e nos símbolos gerados por tal corpo. O que se espera é a via da servidão mútua: agimos sem questionar nossas ações, e o que prova que estamos corretos em agir é um aceno daquele que nos governa (através de decretos, tentativas de barrar algumas ações e políticas públicas contrárias a ideologia do governo, etc). Subverter, neste tipo de governo, é pensar.
“Exercício e dignidade heróica do pensamento: este é o nosso lugar na luta
contra a covardia, a crueldade, a mentira e o cinismo.” (CHAUÍ, 2021, p. 14)
BIBLIOGRAFIA DE APOIO
HARAWAY, Donna. Situated Knowledge: the science questions in feminism and the privilege of partial perspective. Feminist Studies, v. 14, n, 3 (Autumn, 1988), pp. 575-599.)
CHAUI, Marilena. O exercício e a dignidade do pensamento: o lugar da universidade brasileira. Congresso Virtual UFBA: Universidade em movimento, p. 1-14, 2021.
FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica: curso dado no Collegè de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008b.
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. [S. l.]: Companhia de Bolso, 2013.
Gyovana Machado é cristã, formada no Seminário Rhema Brasil, graduanda em História pela UFJF, bolsista no LAHES, interessada nas grandes áreas de teologia, política e feminismo.