A INTELIGÊNCIA DA CIDADE SOMOS NÓS

Nos dias de hoje, não é difícil evidenciar o quanto a humanidade tem evoluído em função do desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Porém, a conotação de evoluído dessa afirmação pode soar polêmica.

O ideário iluminista, que alinhou o progresso à mudança de pensamento operada na revolução copernicana, talvez não tenha imaginado que, a inícios do século XXI, estaríamos lidando com a criação artificial de embriões e à beira de um colapso ambiental planetário. Sob o conceito de Antropoceno, se relacionam (de forma crítica) a dinâmica geológica da Terra e a ação do homem no planeta; hoje, se observa com preocupação o grau de degradação ambiental, social e psíquica provocado pelo chamado progresso – o qual, por sua vez, foi fortemente condicionado pelo avanço tecnológico. Atualmente, há altos riscos de extinção para todas as vidas no planeta e, para alguns, tal situação não parece representar uma condição melhor ou mais evoluída da nossa espécie.

Los muertos que trajo sin ver la ciencia[1] não foram contabilizados como parte do progresso. E esses não totalizam um reduzido número de seres, resultado das experiências incertas ou mal sucedidas do caminho do desenvolvimento, senão que mascaram os milhares de efeitos que se escondem debaixo do tapete das realizações da sociedade capitalista. De fato, há muitos que pensam que é exatamente o capitalismo que deu as condições para a evolução técnica. Porém, esses orgulhosos defensores do progresso só contabilizam resultados que são medidos com a própria vara do acúmulo. As vidas perdidas e precarizadas pela lógica consumista e predatória não formam parte do modelo de sucesso; ao contrário, se dobra a aposta. Para os liberais, o erro está naqueles que não se incorporaram aos processos produtivos, a operações do capitalismo tais como a especulação financeira e hoje, à economia cognitiva – essa sutil transformação das mentes em mercadoria: Quem sou eu? O que eu quero? O que eu penso? Com todas essas questões, o capitalismo, hoje, faz negócios e desdenha de quem não faz.

Na literatura especializada, a evolução técnica é descrita por revoluções industriais: primeiro a máquina; depois a fábrica; recentemente a informação; e agora, a vida. No final do percurso evolutivo, o que se quer racionalizar é o modo de vida do homem nos seus alicerces mais profundos: seu corpo e sua mente.

Normalmente entendemos a tecnologia apontando para o exterior do homem, para o outrem: a natureza, o mundo, a cidade etc. Mas estamos muito próximos de uma guinada irreversível: em poucos anos, a tecnologia apontará para dentro de nós mesmos através de uma diversificada e poderosa biotecnologia.

Na fronteira dessa guinada, se encontram vários avanços técnicos que repercutem diretamente naquilo que hoje chamamos de homem. Aparentemente nosso destino é pós-humano, trans-humano; nosso corpo não será mais o mesmo.

Sabemos que o corpo nunca foi sagrado; da penicilina ao marca-passo, sempre profanamos o corpo, sempre fomos objeto de uma antropotécnica. Mas a questão hoje envolve a transformação radical e irreversível daquilo que entendemos por corpo; algo que se aproxima mais do novo Blade Runner que sonha com uma estirpe, uma descendência, uma nova espécie, do que do desgastado cyborg híbrido de máquina e carne. As fronteiras entre o artificial e o natural, a cada dia, ficam menos nítidas, tal como quando pensamos se a rosa que resulta de um enxerto é natural, artificial, híbrida ou quando afirmamos, definitivamente, que essa separação não faz diferença, porque o que interessa da rosa é sua beleza. Parece que o artifício originário que levou ao atual estado de coisas não é o da rosa do enxerto, mas do homem amputado da pacha, nessa separação artificial que nos afastou da natureza, que bifurcou o olhar do homem e do mundo, tornando este último um externo, algo alheio.

El error consistió en creer que la tierra era nuestra cuando la verdad de las cosas es que nosotros somos de la Tierra[2].  Esta frase, tão verdadeira como necessária, é a epistemologia ancestral dos guardiões da floresta e dos xamãs: o homem pertence à Terra. Se o homem se lança em um projeto técnico que pode resultar em uma outra espécie, num outro ser – como anunciam os cientistas do capitalismo: um novo homem, um homem melhorado, que vai viver mais, pensar melhor e ser definitivamente feliz –  talvez possamos até acreditar nele, mas será necessário também preparar nossos paraquedas coloridos, porque a Terra Medeia pode a qualquer hora nos lembrar, com suas técnicas (estas sim inclusivas), que todos seus filhos lhe pertencem.

Perante tanta ousadia neste babel contemporâneo, este homem que para alguns vai de um homo-faber a um homo-sapiens e depois a um homo-deus, continua a esconder, debaixo do tapete das novas realizações técnicas, as mortes que decretam ao amparo dos investimentos que vêm sustentar todo o recente negócio das vidas: a morte da morte custa dinheiro; a escolha genética de um corpo ário ou sábio custa dinheiro. Aos poucos, os problemas éticos vão pipocando por tudo quanto é lado – e os operacionais também.

Sabemos que, antes dos corpos modificados, a guinada capitalista não precisará mais de trabalhadores nas fábricas automatizadas; os empregos serão outros, e se propõe renda mínima para os que se tornem irrelevantes no novo modelo produtivo dos sistemas ciberfísicos. Quanto mais repetitivo o trabalho, menos chance haverá de fazer parte do novo modelo. A nova indústria se auto-define como revolucionária em função da automação e da interconexão global dos dados das fábricas e dos produtos. Estes últimos, portadores de uma espécie de alma técnica, instruirão as fábricas em torno dos seus íntimos sentidos, uma rede de sensores-atuadores que expressarão palavras técnicas na linguagem da inteligência artificial. A observação e o controle humano diminui.

A cidade quer ser declarada inteligente, de modo que tudo nela seja adequado para o funcionamento otimizado da nova infraestrutura. Da coleta do lixo ao sensoriamento coletivo das vias, passando pelo reconhecimento dos rostos e das atitudes, na vida pública e privada, a ideia é auxiliar aos seus impróprios habitantes que, limitados pela própria natureza dos seus limitados corpos, seguirão à risca as recomendações que virão por todos lados. O enorme volume de big data deverá ser filtrado para uso dos corpos obsoletos, e com isso, a realidade pode se transformar em uma experiência de realidade, um recorte, um subconjunto do real mediado pelas bolhas técnicas da virtualidade automatizada.

A própria forma da cidade pode perder sentido, pois a nossa experiência será assessorada por realidades híbridas. Se o que interessa é enriquecer a experiência mediante interfaces de realidade híbrida, aumentada ou virtual, nem a forma nem a experiência em si são relevantes para o homem que quer ser deus. A humanidade será varrida para baixo do tapete para erguer o novo homem – ou melhor, aquilo que se irá erguer sobre nosso limitado corpo.

O mais próximo que temos, a cidade inteligente, se vislumbra como a cidade de uma inteligência artificial – e de quem a programa – que visa melhorar a vida da cidade e dos seus cidadãos. Parece que o destino técnico quer nos fazer pensar que somos desprovidos de inteligência; porém, isso não é verdade. O que realmente interessa é nos aleijar também da nossa própria inteligência, pois uma vez que sejamos incapazes de inventar as nossas próprias vidas, de produzir nossas próprias escolhas, o capitalismo da cidade inteligente sempre terá um leque de vidas de prateleira para nos oferecer.

Aqui é onde somos chamados a montar a nossa cidade inteligente, porque a cidade da inteligência artificial é incapaz do produzir o novo. Sob o modelo do cálculo, ela opera na representação, e como tal, sempre chega tarde ao presente, lugar próprio do evento, da criação; sempre aparece depois da intuição inventiva; articula relações que primeiro precisa fixar, congelar, extrair toda vitalidade, para só depois poder torná-las relações que representam a vida da cidade; enquanto a cidade é exatamente o contrário: um emaranhado de relações em tempo presente, acontecimentos, que só ocorrem, passam, e são tão presentes que a sua representação é inviável. Os encontros, os olhares, tudo ocorre no tempo da invenção da vida mesma, e não há artificio que desvende o mistério dos corpos enamorados que se deslocam sob o sol presente e a noite viva. Criar a vida da cidade é o maior ato de inteligência de nossa cidade. Tudo deve apontar a nós porque a inteligência da cidade somos nós.

Eu, por exemplo, que sou engenheiro, ando tocando músicas do mundo em discos de vinil velhos e novos, criando vínculos sensíveis que são como um presente a ser vivido ao meu encontro. Há toda uma inteligência musical que abre caminhos, há um coletivo de discotecários inaugurados pelo Vinil é Arte que se enreda em acontecimentos renovadores, porque a cada vez que soa uma música, já soa em outro emaranhado sensível, com outros protagonistas, sempre renovado, sempre diferente. Nesse tempo presente é que ocorre a inteligência da cidade. O resto, conta e reconta quem viveu; mas o que aconteceu nesse encontro permanece aí, na invenção em tempo presente da vida.


[1] Chinoy, cantor popular chileno (www.letras.com/chinoy/1766338/)

[2] Nicanor Parra, Ecopoemas (www.nicanorparra.uchile.cl/antologia/ecopoemas/ecopoemas.html)


José Aravena Reyes é natural de Santiago de Chile. Músico popular e canta-autor na época, veio para o Brasil a cursar pós-graduação em Engenharia Oceânica. Professor Titular da Faculdade de Engenharia desde 2018, fez pós-doutorado em Filosofia da Técnica e da Tecnologia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Atualmente ministra aulas de Engenharia e Sociedade e Gerenciamento de Projetos na UFJF. Na sua vida pessoal, é discotecário de músicas do mundo. Membro do grupo de Maracatú Estrela na Mata, divide suas pesquisas de Filosofia da Tecnologia com suas outras pesquisas musicais em discos de vinil do mundo que utiliza em suas mixagens e produções autorais de música eletrônica.


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