“We still exist”
Escrito no cartaz de um manifestante por ocasião dos ataques à Gaza
Judith Butler abre a discussão no livro “Quem canta o Estado-Nação?”¹ – um intenso diálogo com a teórica Gayatri Spivak – se servindo de uma ambiguidade entre os significados da palavra “estado”. Segundo ela, o estado é um local de poder, mas não representa a totalidade dos meios que o poder ocupa. Um estado também não é sinônimo de nação, pois há estados desassociados do conceito de nação, e às vezes a ideia de Estado-nação aparece justamente para encobrir relações impróprias, em que o estado não necessariamente serve como aparato de positivação da cidadania – e essa ideia nos importa. Mas, explorando seu duplo sentido, um estado também é a descrição da condição em que algo ou alguém se encontra. Aqui já vemos o quanto essas ideias se confundem, pois, quando buscamos responder a pergunta “em que estado estamos?”, recorremos mais ou cedo mais tarde – todavia, inevitavelmente – aos dados calculados e distribuídos pelas estruturas legais que instituem e/ou destituem nossa situação enquanto vida, na medida em que podemos estar atrelados ou não às garantias jurídicas dispostas pelo estado. Se estamos sob situação de desproteção, isso não tem de ver exclusivamente com nosso estado subjetivo perante um contexto real, mas também com o estado em sua forma objetiva. Daí o tom de provocação da pergunta de Butler: “em que tipo de estado estamos quando começamos a pensar no estado?”.
Essa questão traz em seu núcleo um problema determinante, que está na base da circunscrição de determinadas formas de vida e nas dispositividades que versam sobre nossos corpos. Se não falamos de estado sem recorrer às suas dimensões tanto psíquicas quanto (infra-)estruturais, é porque há um poder de lei que coordena justamente isso – o modo como somos inscritos num determinado regime de reconhecimento é operado por um poder que age coordenando nossos modos de subjetividade, formas de trabalho, desejo e linguagem, legitimando a própria condição de existência dessa forma de vida, sempre baseada numa certa versão de corpo identitário. Num mesmo movimento, podemos dizer que esse mesmo poder age contra outras formas de vida, tidas como ilegítimas, não-autorizadas, marginais, patológicas ou desviantes. Não é o caso de pensar que tal esforço exclui qualquer discurso a respeito desses modelos não-hegemônicos de existência, lançando-os fora da política. Quando o poder opera, ele busca criar um lugar interior para essa exterioridade através de narrativas que mantenham coercitivamente essa zona de indeterminação, expropriação e marginalidade. Como alguém já disse, não basta saber gerir o centro; é preciso garantir o controle das margens. Por isso, devemos começar por identificar como são exibidas aquelas formas de vida que não se encontram na inteligibilidade do estado e da norma.
Aprouve a certo espectro das teorias de gênero nomear essa vida aparentemente indeterminada de queer – toda política sexual que desfigure à norma, subverta a determinação pseudonaturalesca das sexualidades hegemônicas e encarnem o desvio: eis uma vida queer, nomeação que faz do lugar mesmo de vulnerabilidade e não-reconhecimento uma proclamação contra o excesso identitário que se dissimula nas lógicas de dominação sexual. É como se algo queer pudesse ser percebido enquanto uma ex/sistência que perturba, pois faz decair a capacidade de interiorização total de sua não-identidade, um solavanco nas hermenêuticas de gênero. Enquanto falamos de queer, falamos de zonas de vulnerabilidade, de exposição, de impressionabilidade e de afetabilidade.
Mas a verdade é que também falamos de estado. Falamos de zonas limiares de maior suscetibilidade à violência e à morte que são organizadas pelo estado. Estado enquanto força de (des)territorizaliação e de estados desterriorializados. Por um momento, a questão queer e os expatriados se tocam. Aliás, expatriados não são exatamente refugiados. Em termos políticos, o expatriado é empurrado ativamente para uma zona de não pertencimento, que pode inclusive ser o lugar onde a pessoa se encontra, e não necessariamente onde ela deixa de estar. Como já dissemos, há um lugar interior reservado para o não-lugar.
Se é plausível o que estamos a dizer aqui, poderíamos, então, pensar uma relação entre a questão queer e os ataques na Cisjordânia? Seriam aqueles de lado de cá do domo de ferro as vidas legítimas, portadores de cidadania e território garantidos por toda força da Lei, e os do lado de lá apenas seres espectrais, vazios de peso ontológico e qualificados para o estado de sem-estado? Seriam eles também formas de vida marginais? Tomando tais hipóteses enquanto possibilidade, a limpeza étnica operada pelo poder israelense tem radicalizado as estratégias de destituição territorial a um povo que se vê cada vez mais incapaz de articular sua vulnerabilidade. Já não se trata apenas de um conflito. Existe toda uma topologia que progressivamente lança para faixas de isolamento os cidadãos palestinos.
Pode-se dizer que a situação é mais uma daquelas em que o não inteligível precisa forçosamente abraçar sua vulnerabilidade como condição de resistência. É claro que, expostos a toda sorte de violência, falar de vulnerabilidade parece expressão de um certo atestado de desistência, em que a luta pela existência fracassa. Não é isso. Falo como quem evoca o lado queer da força, que faz da sua interdependência mútua um esforço político que mobiliza a vulnerabilidade em prol da luta pela igualdade. Não apenas os expatriados, os desviantes e os incompreendidos, mas todos os grupos que sofrem com a precariedade de sua existência. Mais do que nunca, a aliança entre as forças que proclamam o direito de sua existência se faz necessária. Aliançar corpos que dizem “ainda existimos, e vocês não revogarão isso” possui status de urgência.
NOTA
¹BUTLER, J.; SPIVAK, G. Quem canta o Estado-nação? Língua, política e pertencimento (2018).
Micael Correia tem 22 anos e é um escritor não-autorizado. Faz graduação em Psicologia e nutre interesse por Psicanálise, Cultura e Religião.