A mão da mãe apertava-lhe os dedos miúdos com proteção e medo maternal. A outra ia a conduzir o carrinho de supermercado em sintonia com a direção dos olhos: macarrão, feijão, arroz. Já os olhos do pequeno não se limitavam às coisas da lista, esvoaçavam pelas prateleiras cheias de cores, algumas das quais ainda nem aprendera o nome, e todas a acompanhar preços com números e letras e símbolos dos quais ainda nem entendia o significado – conferidas assim, de certa graça pueril, por cheiro bom de novidade. A cabeça girava todos os graus para o panorama do supermercado, ia indo, indo, indo para trás até deitar a cabeça por completo, com a boca entreaberta e a visão mal alcançando o fim vertical da prateleira.
Ele via e saltitava, num desassossego de infância. Estendia o bracinho curto na direção oposta pela qual puxava a mãe o outro braço, queria apontar, tocar, sentir o mundo que se desvendava diante dele e que é todo de fabulação nos primeiros anos de idade. Havia até se esquecido da cena vista naquela manhã: dura, de morte. A sua primeira consciente. Perguntou a mãe o que era, pelo que ela respondeu:
– Morte, meu filho, é quando se perde a vida e se encontra a Deus.
As palavras ficaram lhe ecoando na cabeça, junto com outras do mesmo dia que escutou: “Foi uma perda irreparável”, “Uma fatalidade”. Todas como emaranhado de nós para ele ir desatando, o que nem sempre é estarrecedor, pois desatar de nó resulta em linha vazia. Agora estava naquele mundo cheio de produtos para distrair das linhas e nós, produtos para perder e perder-se de vista. O mundo era grande, feito pro perdimento, foi então que notou mesmo que se perdera da mãe. Veio um pequeno sobressalto e gelor no peito; o coração, respondendo ao gelor, desatinando a bater, e a respiração mal dando conta de acompanhar o desatino. Olhou em volta sem ver as prateleiras, correu pelos corredores compridos, conferiu os rostos dos adultos. E suas mãos? Elas agora estavam a segurar parte da frente do casaquinho, amarrotando-o, numa busca desesperada por correspondência, por segurança. Todos procuram na vida o que segurar para se segurar na vida: pessoas, ciência, religião, arte… Ele tinha a mão da mãe, agora, sem ela, não aguentaria a liberdade das suas, então precisava segurar com força o casaco. As cores, os produtos e as prateleiras, todos a se impor em vão, ele não mais os notava, não mais se distraía. Foi dando conta que a vida sem distração era insuportável. Os pensamentos da manhã vieram voltando, se misturando com os do presente e resultando em um grito uníssono: perda. Tudo aquilo foi lhe inundando o peito, subindo a superfície do rosto e transbordando pelos olhos sobre as bochechas e escorrendo pelo nariz sobre a boca, a qual emitiu um choro tímido soluçado. A cabeça cheia de nós misturados com sentimentos que ele mal descobria, mas já desatava.
Explicou à mãe que a morte é perder os outros e a vida é perder a si.
Nathaly Rocha é mineira de berço e guarulhense de coração. É artista desde sempre. Atualmente, cursa Artes Visuais na UNESP. Acompanhe o trabalho da artista pelo Instagram.