Relato de um restauro em papéis

Me foi pedido para falar sobre o trabalho do restaurador, a complexidade e os desafios encontrados em campo. A partir daí fui a minha memória buscando trabalhos onde foi necessário a complementação de competências da equipe, a inter e a transdisciplinaridade, recorrendo a uma consultoria, por exemplo, pois percebi que os melhores resultados se dão quanto esses recursos são utilizados.

O trabalho de restauração da Vila Ferreira Lage foi muito amplo e desenvolvido junto à empresa contratada, Atelier Histórica, para o restauro artístico e de fachadas, atuando assim nas pinturas parietais da circulação, forro e papeis de parede originais. 

Quero compartilhar com vocês algumas curiosidades e recursos utilizados para atuar no restauro dos papeis. Nossa equipe era composta por pessoas com vasta experiencia e disposição para solucionar problemas de forma criativa, porém nos deparamos com uma situação totalmente nova. Papeis de parede diferentes em sua composição assim como em estado de degradação.

Nesta situação é importante reconhecer o momento de pedir ajuda, saber dos nossos limites e até onde podemos ir. 

Recorremos à consultoria de um restaurador especialista em papel, Elias Souza, que por sua vez realizou os testes que orientaram a abordagem da limpeza e discorremos sobre propostas de intervenção, tendo em conta “o risco de um tratamento poder matar o paciente.” Os testes aplicados na época foram:

O de abrasão, que serve para avaliar a capacidade da superfície do papel resistir os diferentes níveis de força que possivelmente serão utilizados em uma higienização. 

O de absorção ou tensão superficial, que visa registrar a capacidade em tempo que o papel tem de absorver soluções aquosas.

O de solubilidade, que avalia a resistência das tintas a solução aquosa. 

Como cada sala era decorada com um papel específico, no total de 4 tipologias, traçamos uma estratégia de intervenção para cada uma baseada nas orientações dadas e no intercâmbio de conhecimentos a partir destas diretrizes iniciais. 

A empresa criou todas as condições necessárias para um bom trabalho disponibilizando recursos e tecnologias. Bancadas, vidros, papel mata-borrão para limpeza e planificação dos papeis soltos para serem recolocados com adesivo apropriado. 

Alguns, todavia, tiveram necessidade de que o tratamento fosse feito in loco.  Neste caso, a parede (suporte) apresentava problemas como infiltrações, trincas, buracos de antigos pregos oxidados. Enfim. Tratamos o suporte e essas partes consideramos como lacunas, áreas onde havia perda do papel que precisava ser reintegrado.

No escritório, sabíamos da necessidade de sacrificar uma parede devido ao dano causado por um longo período de infiltração por um telhado comprometido. Removemos os papeis que estavam muito danificados para realizar o tratamento da parede. Mesmo esse papel em péssimas condições, pois apresentavam manchas biológicas e crostas de salinização, havia áreas que poderiam ser reaproveitadas para preenchimento de lacunas. 

Figura 1 Avaliação do que poderia ser reaproveitado.
Figura 2 Demonstração da etapa de nivelamento com poupa de papel
Figura 3 Reintegração pictórica dos enxertos de poupa.
Figura 4 Seção finalizada

Na higienização in loco devido e fragilidade encontrada nos testes, optamos por uma técnica á seco, e ligeiramente úmido com solução com detergente neutro.

Figura 5 Testes de higienização

Para a recomposição, a empresa disponibilizou um mostruário de papeis japoneses para restauração (World Paper), várias gramaturas e texturas, um luxo! A partir daí fomos comparando com o original até encontrar o que mais se aproximava tanto em gramatura como textura. Com os papéis escolhidos para cada sala, tínhamos que identificar as lacunas para colar o papel.

Estas lacunas eram desenhadas em um papel vegetal, com legenda, e transportado para uma bancada para a realização do corte.  Esse corte não poderia ser feito com estilete ou tesoura, pois as bordas tinham que ter um acabamento orgânico, desfiado, para se integrarem visualmente ao serem coladas nas lacunas. Então o método utilizado foi do picote feito com agulha, para que fosse destacado. Um misto de divertido e alucinado, pois havia dezenas de lacunas, grandes e pequenas, como um buraco de prego. Toda a ausência de papel deveria ser recomposta com o papel destacado ou com poupa, caso fosse muito pequeno, para depois realizarmos a reintegração pictórica. 

Figura 6 Bancada para corte especial picotado
Figura 7 Identificação das lacunas  para a realização do picote

Já na sala de jantar, encontramos um novo desafio: o papel é chancelado em alto relevo.  As perdas não eram tão significativas, somente por um problema estrutural grave localizado acima da janela onde havia uma perda do papel.  Ao realizarmos o mapeamento de danos tivemos a sorte de encontrar pedaços sobrepostos que pudemos utilizar para obturação de pequenas áreas e confeccionamos um novo papel para recompor a grande área danificada. 

Essa confecção foi necessária pois não havia tempo hábil nem recursos para encomendar do fabricante (francês).  É bom lembrar que todas essas conclusões se chegam com muito diálogo e tentativas.

Então chegamos à confecção do papel chancelado em alto relevo da sala de jantar.  Conversas com amigos e colegas restauradores do Arquivo Nacional nos levou à conclusão de que o ideal seria fazermos um molde de silicone in loco com um tamanho adequado para fazer algumas cópias. Nada muito grande. E recordando ao que falei no início dessa conversa, um bom trabalho se dá em complementação das competências! 

Figura 8 Retirada do molde de silicone 

Por fim, em uma salinha, montamos a nossa “cozinha” com bancada, balança, liquidificador, todos os recursos necessários, enquanto isso, tudo mais acontecia, cortes picotados, colagens dos papeis, pintura decorativa do teto! Eis que chega o momento de confecção da prótese. 

O consultor nos indicou uma receita para feitura de um papel, levando em consideração as características do original, sua gramatura. Preparamos a polpa e colocamos sobre nosso molde, e a polpa começou a decantar…gente! E o que fazer com toda essa água que está vazando?  Papel mata-borrão! Isso! Rsrsrsrs Lembrando que somos restauradores, mas não especialistas em confecção de papel. Com nosso papelzinho descansando, nos ocupamos de outras tarefas. 

No dia seguinte fomos ver o resultado. Ah! Que decepção! Estava seco, com o relevo, porém todo deformado e cheio de buracos. Quase desesperadas, conversamos sobre nosso fracasso e pesar. Eis que o colega que estava, em cima do andaime, encarregado da pintura decorativa do teto fala:  tenta colocar um peso sobre ele na próxima tentativa! Haha Gênio!? E para a nossa surpresa… No dia seguinte, nossa prótese estava perfeita, então agora se tratava de pintar e colar. 

Figura 9 Prótese do papel pronta
Figura 10 Etapa de pintura imitativa em andamento

E esse foi um dos episódios desse maravilhoso trabalho feito com muitas mãos e saberes.


Alice Medina de Sena Torres é Restauradora – Coordenadora 

Claudia Yamada é Socia da empresa Atelier Histórica


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