A ironia e, talvez desejo íntimo, de um pássaro ver um humano preso em sua gaiola. Não um, mas dois pombos me espreitavam, olhando pela janela de meu quarto como se cochichassem sobre mim e rissem de minha condição, de meu cárcere com janelas e porta da qual possuo a chave. Olhavam dobrando o pescoço, virando a cabeça em tom de me ver em todos os ângulos – ou de conseguir me ver em algum ângulo? Há algo, certo ângulo, certa forma de ver em nós, que condiz com a identidade inteira. Há algo em nós que só há em nós – em mim, em cada um – será isso essência? Artistas tem dom de enxergar essências. – mas não se engane!, enxergar não é tarefa fácil ou encantadora – Não, não é ascese, Platão. Enxergar é quase como tomar tudo quanto viu como alucinação. E poucos conseguem suportar o peso de ser esquizofrênico de visão.., há muita relutância à loucura, relutância a defrontar-se com a irracionalidade do mundo, e, sobretudo, de si. Um pássaro se foi? Se cansou de procurar em mim ângulo de identidade que mostrasse por esgueira minh’alma particular e definida e se foi. Mas a visão dos pombos é de potência enorme: veem a vida de cima, o retrato da cidade e suas misérias ao lado de suas riquezas e edificações que desedificam humanidade e desalojam corpos humanos e ainda assim – continuam vendo. Terá sido eu imagem tão miserável quanto essa para que esse pombo não me suportasse ver? E eu, me suporto ver? Talvez só me suporte ver ao espelho porque não tenho capacidade de ângulos. Ou será que esse pássaro, inconformado em me encarar de todos os ângulos sem me ver, houvesse desistido?, desistido de procurar em mim um ângulo particular e essencial que lhe permitisse ver, ainda que por esgueira, minha espécie de alma? Não tenho ângulo particular, só ângulos indistintos?, só tenho generalidades? Não., um pombo continua a me meditar, segurarei minha esperança em um pombo num fio de poste. A esperança é sempre uma equilibrista numa corda bamba. Mas neste meu caso, o cair da esperança me seria mais consolador do que se voasse por imediato – morta ao quente do asfalto eu poderia me seguir a crer que talvez tenha um Eu em mim, só não pôde ser visto porque, de súbito, a pomba caíra. Agora, se voasse, era a desistência da segunda em encarar o vazio de meu ser. Mas ainda estava lá, e era o que me bastava para manter-me respirando minhas crenças; É o que quase todos, para manter respiração, necessitam: acreditar que alguém está olhando por ti. No meu caso, meu ser misericordioso era um pombo., iluminado, ao sol. Enquanto estava eu na sombra.
Em um alongar de penas e pernas, mal acompanhando meu espanto, ele fez o movimento que daria nó nas tripas de meu estômago e na corda bamba de minha ingênua e vulnerável esperança: Não, não voou nem caiu do fio do poste. Lhe disse, lhe disse; foi pior, peor – porque foi um pior que eu nem mesmo imaginara a possibilidade, um pior que não conhecia: foi peor. Após seus movimentos pausados, o alongamento dos pés, das asas; meu pombo se virou. Deu meia volta passando um pé pelo lado do outro e me deu as costas. Como eu poderia respirar agora o ar gelado e seco de minha vida dentro de minha gaiola de tijolos se esse, que olhava por mim, a quem eu havia equilibrado minhas esperanças e sustentado minhas frágeis crenças, agora havia me dado as costas?, mirado os olhos para o outro lado das vidas amontoadas na cidade? Foi minha penumbra., foi meu vazio escuro que essa criatura enxergou quando tentou ver meu ângulo de alma e aura. Até as telhas, enfileiradas – uma a uma- tem aura visível para os pombos.? Óbvio. Mesmo elas têm o aqui e o agora; fazem parte de uma casa num sistema de telhado – fazem parte de algo. E estão nesse momento ao sol de Agora do dia que lhe ilumina cor. Sim, o pombo nem conseguiu ver minha cor na penumbra de meu sarcófago minuciosamente arquitetado para abrigar corpo e manter vida, mas que não passa de crença tão antiga quanto a de vida pós-morte enquanto eu tento me ater à crença da existência de vida pré-morte e morte pós vida. Mas num súbito, num átimo de minha divagação.; meu pombo voou. E pura e simplesmente entrou dentro do azul sem nuvem. Desapareceu. Tal como acontece com as convicções quando se enxerga: elas esvoaçam num ato de alucinação. É por essa razão que ver é uma tal desorganização e uma desilusão. E certifique-se que suporte – Édipo não suportou ver-se e furou os olhos – certifique-se que suporte ver o que vou dizer que vi, nesta manhã, com o pombo deixando de ver-me: ver é finalmente deixar o que se viu.
Nathaly Rocha é mineira de berço e guarulhense de coração. É artista desde sempre. Atualmente, cursa Artes Visuais na UNESP. Acompanhe o trabalho da artista pelo Instagram.