Pelo que observo no Brasil, parece haver um consenso nacional de que os fumantes podem jogar as bitucas onde quiserem. Se eu jogar um papel de bala na calçada posso ser censurado por alguém, pelo menos mentalmente. Algumas pessoas, quando estão atrás de quem jogou lixo no chão, recolhem-no e colocam em seu devido lugar. Outras – como eu já fiz – perseguem o dono da sujeira e devolvem o objeto que lhe pertence. Mas se alguém joga na mesma calçada uma bituca de cigarro, as possibilidades dessa pessoa ser censurada diminuem significativamente.
Aprendi com meus pais aquela regra básica – se onde você está não tem um lixo para jogar o lixo, deve guardar o lixo no bolso ou apenas segurá-lo até encontrar um lixo. Acho que, se você guardar um cigarro recém fumado no bolso, pode queimar sua roupa. Se segurar até ele apagar para poder colocar no bolso, sua roupa pode ficar impregnada com o cheiro dele. Aí estão, talvez, alguns pontos que favorecem a licença nacional para descartes aleatórios de bitucas de cigarro.
Você acha que as possíveis queimaduras ou a adesão irreversível do aroma da nicotina são justificativas plausíveis para concederem essa exceção? Eu não sei muito bem. Primeiro porque eu não fumo e não fiz nenhuma pesquisa minuciosa antes de escrever esse texto. Isso aqui foi feito apenas com base em divagações irrelevantes. A propósito, talvez, se ao invés de guardarem no bolso, soprarem até o cigarro apagar e segurarem até achar um lixo, o problema seria resolvido. Mas aí as mãos dos fumantes iam ficar fedendo. Se, em seguida, fossem cumprimentar alguém, transmitiriam esse cheiro para as mãos da pessoa em questão.
Uma coisa me inquieta. Se o cheiro indesejado pode ser um dos motivos para descartar a bituca em qualquer lugar – por que, nas festas por exemplo, a maioria não se incomoda em dar beijos de língua em alguém que acabou de fumar um maço inteiro? Podemos acrescentar também o cheiro do álcool ingerido durante a festa. Isso sem citar as outras substâncias possíveis.
Se você também fuma ou bebe faz sentido não se incomodar, já que os sabores em questão devem ser agradáveis para você. Mas, se você não consome nenhuma dessas coisas, por que não acha ruim esses gostos? Provavelmente é porque o prazer de dar uns amassos com alguém faz valer o sacrifício. Então, diante do tesão dos corpos se acariciando e trocando saliva, enquanto a língua está dentro da sua boca (e eventualmente em outros lugares), torna-se irrelevante qualquer cheiro que você normalmente rejeitaria.
Engraçado é que um amigo meu, quando bebe leite com nescau, não pode beijar seu namorado sem antes escovar os dentes. Eu não posso beijar minha esposa quando acabo de comer banana. Os motivos são óbvios. Ele odeia nescau – que é melhor que toddy – e ela odeia banana. Daí eu criei a seguinte teoria (no sentido vulgar do termo): os não fumantes ou não consumidores de álcool, que se entregam aos beijos que têm sabor dessas substâncias, não odeiam essas coisas como afirmam odiar. Talvez haja alguma atração oculta, mas que só é satisfeita quando pode se disfarçar em meio às trocas de fluidos humanos.
Claro, os outros sabores e sensações, como eu já disse, parecem compensar alguns eflúvios indesejados. De modo que alguém com um beijo de sabor mais palatável para você pode perder de uma boca totalmente deteriorada pela química, desde que esses lábios deteriorados sejam parte de um corpo gostoso e um rosto bonito. Se a pessoa de beijo com seu sabor favorito for gostosa, ela pode ganhar da outra. Mas se ela não lhe for atraente, foda-se – você prefere um sabor menos atraente, que na verdade fica mais gostoso levando em conta sua apreciação do conjunto dos aspectos da experiência. Pelo menos é o que parece na maioria das vezes.
Uma vez meu irmão e eu acendemos um pequeno graveto e tentamos fumar. Acho que me engasguei com a fumaça e os farelos de madeira. Não lembro a reação do meu irmão. Mas acho que foi parecida com a minha. Eu devia ter uns oito ou nove anos. Se não contarmos o fato de que quase todos, em algum momento, são fumantes passivos, essa experiência consiste em todo o meu histórico de fumante. Eu tenho asma. Acho que fumar não ia dar muito certo.
O que será que tanto atrai no cigarro? Imagino que as respostas sejam várias. Mas uma dessas explicações me deixa mais fascinado – a de que a sensação de morte constante e gradativa atrai as pessoas, já que no fundo a maioria de nós quer deixar esse mundo de merda. Richard Klein, autor do livro Cigarros são Sublimes, fala sobre essa perspectiva em uma entrevista à Folha de São Paulo.
Talvez as pessoas possam ter o direito de pesar as vantagens do cigarro contra seus riscos. Afinal, a própria vida é uma doença progressiva, da qual só nos recuperamos postumamente. Se ter saúde é estar livre da doença, só se consegue ser saudável por meio da morte.
Será que a ideia da deterioração da vida, inconscientemente, torna-se atrativa? Seria uma espécie de automutilação. No Brasil, a partir de 2002, as empresas passaram a ser obrigadas a colocar nas carteiras de cigarro imagens com os malefícios que seu uso pode trazer. Se eventualmente essas fotos causam alguma reflexão – sobretudo nas considerações sobre impotência sexual – também por meio delas pode-se aumentar a possibilidade de atração pela substância suicida. Estou falando sobre experiências mais compreensíveis para mim. Estou falando sobre um aspecto morbidamente atraente. Caso eu precisasse descrever os porquês de eu fumar, esse aspecto suicida seria o motivo principal.
Os outros atrativos mais popularizados podem ser vistos nas atuais séries cujas histórias acontecem nos anos 80. Notadamente nessa década o cigarro foi exaltado como um acessório de pessoas descoladas. Seu uso podia ser diretamente relacionado a adjetivos como sexy ou nobre transgressor. Pelo menos essa é a descrição que nos apresentam ao exibir as publicidades mais velhas correspondentes ao tema. Richard Klein não chamaria de “nobre” o caráter transgressor normalmente associado ao cigarro. Na verdade ele diz que “a beleza dos cigarros nunca foi entendida ou representada como inequivocamente positiva – sempre foi associada com mau gosto, transgressão e morte. Talvez esteja aí mesmo a fonte de sua atração por tantas pessoas”.
Em sua Antropologia de um ponto de vista pragmático, Kant faz considerações bastante interessantes sobre o hábito de fumar.
[…] é como que um impulso frequentemente repetido para recobrar a atenção sobre o próprio estado de pensamento, que, do contrário, se entorpeceria ou se aborreceria com a uniformidade e monotonia, enquanto aqueles meios sempre os despertam como que aos solavancos. Essa espécie de entretenimento do ser humano consigo mesmo substitui uma companhia, pois preenche, no lugar da conversa, o vazio do tempo com sensações sempre novas e com excitações fugazes, mas sempre renovadas.
Até que ponto as declarações de Kant e os meus vagos devaneios tem a ver com a realidade, as pessoas que fumam poderão negar ou afirmar com muito mais propriedade do que eu. Além daqueles que se debruçaram com dedicação mais intensa sobre o estudo desse assunto.
Voltando às bitucas de cigarro: aparentemente, alguns alegam não jogar em qualquer lugar. Mas apenas em sarjetas já sujas ou em algum lugar de sua própria casa. Mas acredito que, na maioria desses casos, outros moradores da mesma casa seriam censurados se jogassem embalagens e cascas de frutas ali onde jazem os falecidos rolos de tabaco. Talvez a repreensão não venha dos próprios fumantes. Mas a sujeira das bitucas já é tão normal que um visitante não se incomodaria tanto com elas como se incomodaria com os outros lixos. Aliás, será que os restos mortais dos cigarros deixam de ser considerados como lixo porque – semelhante ao cadáver humano – as bitucas são os símbolos deteriorados de entes queridos que se foram?
Wudson Marcos é graduado em Filosofia pela UFMS, pós-graduado em Sociologia e Orientação Educacional pela Faculdade Dom Alberto. Trabalha como professor, faz mestrado em Estética e Filosofia da Arte pela UFSC. Também é poeta, autor do livro CGS, e futuro pastor excomungado, sendo que a excomunhão já foi efetivada.