Olho com olhos distintos (talvez distantes, de onde): minhas pupilas sempre consumiram tudo que é palavra: famintas. Mas são imagens que sempre me perseguem. Nesse relance de rabo-de-olho. Palavra quando escrita é imagem, não me deixem esquecer. E surge, de um horizonte rarefeito, numa ponta de acaso, Leonilson. José Leonilson. Paulista, artista, delicado em toda sua selvageria. E nesses tempos em que tenho desistido, cego pelas lágrimas que rolaram ao contrário, me atravessou a luz de sua obra. E então o desafio de levantar da cama e escrever sobre um de seus tecidos. Uma obra indicada, escolhida pelo outro, pela mesma ponta de acaso descrita acima, que se enrola no meu nada. Mas a obra se desenrola: aqui, abaixo e dentro.
Como se, dessa obra, eu entrasse através do texto: esses cinco por cento de todo o tecido. E então, caduco, manco, com olhos esbaforidos que correram de um lado pro outro, paro. Nesse momento exato da escrita, deitei o livro [com a obra] sobre a cama, que fica em minhas costas. Para observá-lo, preciso sair do texto (ou tela?). Girar 180º.
Esse texto acaba de virar absurdamente corporal. Alémpalavra.
Existe a inexistência da intersecção. E o quão curioso esses pontos tortos nessa obra. Uma simetria assimétrica, uma apenas sensação de que tudo está no devido lugar. As cores, quentes, à direita. As cores frias, à esquerda. Reparo: como se as listas brancas estivessem escorrendo em decantação. Como se cheio fosse uma sucessão de pequenos vazios intercalados. Como se cheio fosse uma construção fundada no vazio, num grande e silencioso branco eterno. São como as ruas da cidade de São Paulo, construídas em cima de rios, e que não conseguem conter o aumento das águas. E qual a culpa do rio? Aqui, não só as margens oprimem. Um vazio estrutural, que escorre pra cima. Um vazio pilastra, em que apoiei um eu-ego-copan e sua única forma possível: torta. Um chão insustentável para um prédio conivente com o terremoto.
E ainda essa solidão descentralizada, independente do temperamento, do tempero das peles, da regra das cores: um cheio regado à seu espelho, seu outro contraditório. Um cheio condenado a vizinhar seu anti. Um vazio vivente no horizonte do cheio. Assimétricos, opostos, mas juntos. Numa única existência possível.
Leonilson é cirúrgico como um deus que costura siameses.
Referências:
Leonilson: truth, ficition/ Curadoria de textos Adriano Pedros. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2014.
Marcus Cardoso é poeta, músico e historiador. Vivente na cidade de Ribeirão Pires, lançou as plaquetes todo poeta mente sinceramente (2016) e palimpsesto, eu (2018): ambas de modo independente. Tem poemas publicados nas revistas Vício Velho, Ruído Manifesto, A Bacana, Arribação e no Mural da Kotter Editorial. Escreve, semanalmente, ensaios-prosas-poéticas que teimam em ser chamadas de resenha, para o site FolkdaWorld. É cantautor no projeto reticente. Segue buscando maneiras diversas de atravessar o múltiplo subúrbio da palavra.