Francisco Borges está morto. Ao que tudo indica, ingeriu acidentalmente veneno de formigas depois de uma dedetização em seu restaurante, na última semana. Hoje eu percebo que existe muita ironia em toda a situação, uma ironia macabra. Ele não desejava morrer, pelo menos não mais.
Somos amigos desde que tínhamos seis anos de idade. Crescemos estudando na mesma escola, mesmo que em turmas diferentes, saímos juntos à noite durante toda a adolescência. Eu me casei, Francisco não, mas mesmo assim foi testemunha na cerimônia civil e o centro das atenções na nossa festa. Há mais ou menos um ano, ele se envolveu com um intercambista espanhol seis anos mais novo do que ele. Foi uma relação atribulada, cheia de altos e baixos. Nunca tinha visto o Borges tão feliz e tão triste ao mesmo tempo. Quando Roberto voltou para Cadiz, meu amigo tentou se matar três vezes: cortou os pulsos na horizontal, ingeriu uma cartela inteira de dipirona e ameaçou se jogar do décimo quarto andar. Foi fazer um tratamento de descarrego num terreiro de candomblé, ficou melhor e desistiu da morte. Eu tinha as chaves do seu apartamento porque ele dizia que eu deveria cuidar do Elton John, o cachorro, se alguma coisa viesse a dar errado. Após meses da tentativa de suicídio, meu amigo morreu…
Depois do acontecido, a vigilância sanitária fechou o restaurante; foi uma confusão do caralho, com repórteres e um monte de gente dizendo que tinha passado mal também. O Borges era filho único de uma família que o colocou pra fora de casa quando assumiu que era viado. Ele só tinha a mim, e por isso eu assumi a coisa toda de inventário e de desmanchar apartamento. Era um jeito de eu estar mais perto do meu irmão e do meu amigo. Tenho certeza de que ele faria a mesma coisa no meu lugar, ainda mais porque era fácil pra mim pegar um advogado do escritório e colocar à disposição das burocracias do morrer no Brasil. Mas aquela morte acabou comigo.
Helena tirou férias e foi com a mãe para Gramado. Fiquei o final de semana inteiro sozinho, e foi quando decidi ir pela primeira vez no apartamento dele. O Elton já estava morando com a gente, mas eu nunca tinha voltado lá. Vi algumas fotos na parede, várias com o Roberto – espanhol filho da puta. A cama ainda estava desarrumada duas semanas depois do óbito, o banheiro estava cheio de cremes hidratantes e cosméticos. Fiquei perdido olhando a biblioteca mirrada que ele tinha no quarto e foi quando percebi um exemplar de A Uruguaia no criado mudo. Eu tinha indicado pra ele. Folheei o livro e encontrei um papel dobrado como carta. Um A4 escrito a mão com o título: Minha carta de não suicídio.
Porra Borges!
“Esse texto é destinado a pelo menos duas pessoas diretamente. A uma que ainda não nasceu em mim, e a outra que eu magoei e me magoou muito. Não sei se existem perdas quando existe amor, mas a angústia corrói a gente por dentro de maneiras tão cruéis que não se sabe bem onde começa ou termina o seu reinado cor de cobre.
Tentei tirar minha vida três vezes. Não escrevi nenhuma carta de suicídio, listando motivos, pessoas, situações, perdas, enfim, fraturas nesse prédio que a gente chama de vida e que me levavam a fazer assim. Nas três vezes, separei cartões e senhas, deixei a chave do cofre sobre a prateleira, limpei a casa, dei comida para o Elton John, tomei banho.
Mas por que pensei em fazer assim?
Eu achava que sabia, mas é hoje, um mês e meio depois, que vejo que não. Há muita lógica em pensar em desistir. É uma escolha existencial também. Não querer mais jogar um jogo com regras sujas. Se posso escolher a vida, não poderia escolher a morte? Posso. A morte é um salto para fora do real.
Vivi toda uma existência tendo a certeza de que eu deveria fazer o certo para cumprir meu papel de pessoa de bem. Mas o desejo era proibido para mim porque eu amo invertido. Não me casei, não construí uma vida de sonhos, e não porque eu não queria, mas porque era irreal. Quando meu amigo e meu amor voltou para casa, eu fiquei sozinho. Tive medo. Tudo que pensava de mim mesmo se esfacelou como pó. Só sobrou o Beto, mas o Beto tinha a vida dela com a Helena. Não tinham obrigação de adotar uma poc de trinta e oito anos.
Tudo caiu.
Se tudo caiu, não tenho o direito de escolher também? Aí me enganei e por isso desisti de morrer. A vida me quebrou, mesmo que estivesse honestamente enganado com ela. O que ficou à mostra foi a carne viva de uma criança, que, adulto, olha pela janela de casa com medo de brincar na rua. Foi preciso minha analista perguntar sobre como escuto o não, para que eu sentisse enjoo e vontade de vomitar. Lembrei de que também uma pessoa que amo bastante costumava se sentir assim de vez em quando, e tive a prova de como é. A escolha do homem, nesse caso, era o esperneio do menino.
Não senti vergonha, não fiquei encabulado, assim como não temi punições divinas. A sensação ao perceber que agindo assim eu tentava significar alguma coisa me fez perceber que eu estava esquecendo de significar alguém. E ao fazer isso, aquelas pessoas que tentavam me amar de verdade só podiam se sentir inseguras. Não eram coisa. Eu também não. Aqui senti dor, silêncio, medo e um pouco de esperança, bem lá no fundo.
Não se trata de saber que estamos todos fodidos nessa vida. Estamos. Nem de olhar a fratura enorme que é a objetividade do outro que me olha pela sacada de alguma teoria puritana, mas de perceber que, no fim, eu acho que só estive buscando ser feliz, e falhei querendo parecer mais do que experimentar. Da mesma forma, as pessoas também buscam aliviar suas inseguranças. Vamos tecendo uma colcha disforme, feia, mal atada, mas que é capaz de esquentar quando faz frio. A morte é a tesoura da Moira.
Tenho pensado que não se trata de desejar que o outro fique aqui a qualquer custo, que ocupe o espaço da fantasia capaz de disfarçar o buraco que tenho aqui dentro. Preciso de espaço para que olhe com calma. O outro precisa de espaço para que decida querer ficar e assim nós fazemos o caminho pela borda do abismo.
Desculpa, amigos. Vou ficar aqui. Se são as pessoas que erram feio e colocam tudo a perder, elas também podem recomeçar e não desistir. Não vou desistir. Não vou desistir de ser gente. Não vou desistir do que sinto por quem me mostrou quem eu sou. E ainda preciso rebolar muito essa minha raba por aí”.
Que merda Borges. Essa vida é muito injusta. Sinto sua falta, amigo.
Vinícius Lara é psicanalista, historiador, fotógrafo amador e um apaixonado pelo absurdo.