Quem examinar com atenção a arte dos dias atuais será confrontado com uma desconcertante profusão de estilos, formas, práticas e programas. De início, parece que, quanto mais olhamos, menos certeza podemos ter quanto àquilo que, afinal, permite que as obras sejam qualificadas como ‘arte’, pelo menos de um ponto de vista tradicional. Por um lado, não parece haver mais nenhum material particular que desfrute do privilégio de ser imediatamente reconhecível como material da arte: a arte recente tem utilizado não apenas tinta, metal e pedra, mas também ar, luz, som, palavras, pessoas, comida e muitas outras coisas.
(ARCHER, M. Arte contemporânea: uma história concisa.
Ed. Martins Fontes. São Paulo, 2012. Prefácio.)
Após oportunidade de uma breve visitação a um dos maiores complexos a céu aberto de arte contemporânea no Brasil – e em Minas Gerais, região essa que contempla o instituto de arte o qual fiz parte -, não poderia deixar de fazer um recorte e me aproveitar disso para fomentação das ideias desse presente trabalho.
O objeto dessa análise foi escolhido em meio a um conjunto de possibilidades instigantes e desafiadoras na medida em que o contexto no qual se insere essa obra permite uma multiplicidade de olhares. Possibilidades essas vindas de um grande parque repleto de arte contemporânea e amostras botânicas: dado nome, Inhotim. A experiência prática acontece desde o entrar no complexo até a definição de escolha da obra para análise em questão.
Ao entrar em Inhotim, é possível decidir por qual caminho seguir e, com o auxilio de um mapa, identificar as obras que suscitam maior interesse no expectador, ou seja, àquele que constroi uma expectativa referente a alguma coisa. São tantos caminhos, tantas obras, tantos olhares além dos veres, que, certamente, o tempo que tive para tal não foi suficiente para enxergar todas as obras além. Em certos momentos, era preciso apenas ver sem prejudicar ou determinar um único sentido; a provocação fazia-se permanente mesmo sendo necessário um passo mais alargado: muito ainda por se ver e admirar. Não então, olhar. Olhar com os olhos de quem busca suprir alguma certa curiosidade, ou mesmo identificação.
Para chegar até o meu objeto de escolha, perpassei monumentos únicos e surpreendentes, tanto quanto o meu objeto de escolha. Mas não tanto a serem os meus objetos de escolha.
Ao me deparar com a galeria Doris Salcedo (Colômbia), entendi aquele espaço como algo inacabado – ou até mesmo abandonado. Era um lugar em cimento queimado, um tanto quanto alto, e distante dos demais. Ao redor havia bastante natureza, como em qualquer pedacinho daquele imenso jardim. Cheguei perto, aguardei a auxiliar da Galeria abrir a grande porta de correr, feita de vidro. Abriu. Havia outra grande porta, também de correr, também de vidro. Autorizaram-me a abertura da segunda porta, e me joguei naquela sala branca repleta de grades encravadas na parede de gesso. Algumas se sobressaiam; outras, eram tão profundas que não era possível ver de longe. Foi preciso me aproximar.
Estando no centro da sala, as paredes pareciam me sufocar naquele ambiente fechado. As luzes eram daquele estilo mais esbranquiçada, fria. Assim como o ar condicionado do ambiente, que mantinha o local em plenas condições, visto que os materiais usados eram o Aço e o Gesso, tudo parecia frio, como se quisesse me empurrar para fora daquela situação. Não consegui permanecer por muito tempo: além do ver, olhares e sentimentos se atravessaram naquele momento, eu simplesmente quis sair daquela condição o quanto antes. Mas, entretanto, para tal, era preciso que alguém se submetesse a abrir a porta para mim. Em instantes, era como se eu não tivesse controle sobre a minha vida e sobre o destino da mesma.
Ao sair, fui direto olhar o texto de apoio sobre a obra, para tentar entender um pouco sobre o que se tratava ou encontrar algo que pudesse nortear aquelas sensações que me causaram. Então, entendi que as obras de Salcedo consistem num grande diálogo entre contextos políticos e sociais. Mas, sobretudo nessa obra, Neither (2004), Salcedo procura a intervenção na arquitetura, além de misturar a questão de segregação e das condições dos campos de concentração. Ainda, critica as questões entre as paredes que protegem e as grades que prendem e separam; critica também a questão das segregações das grandes cidades. É a fruição pura dentro da galeria.
Diante de todas essas constatações e experimentações, porque então escolher algo que me causou essas sensações estranhas e de sufocamento? Por que não falar de algo que seja positivo, alegre, ou mesmo discutir o belo? Não sei. Acredito que a arte, uma vez que provoca momentos de tanta intensidade (mesmo que num curto espaço de tempo), também cumpre sua função de mexer com o dessa vez, espectador – aquele que assiste a um espetáculo, obra de arte. A arte é, além de produto final, momento, estranhamento, identificação. Ou não. Ou nada. Ou simplesmente não ser nada naquele momento para aquele espectador. Para mim, foi agonia, aflição e admiração. Um cubo branco, de luz fria, com grades embutidas de forma a obter uma repetição, um ar condicionado, eu. Portas que se abrem e fecham com mecanicidade, e um outro ser humano como comandante do meu sair e entrar.
E então, podemos entender que do lado de fora daquela galeria que eu acabara de sair havia tamanha liberdade, diametralmente em contraponto com que havia sido vivenciado ali, naqueles instantes tão recentes. Talvez servindo de entendimento empírico ao que aquelas palavras descritas no apoio da obra queriam dizer. A vida em sociedade é, mesmo, uma dualidade de prisões e liberdades. Prisões sociais, padrões, instituições, governo, sistema como um todo. A liberdade pura fica por conta da natureza que nos cerca, nos acolhe e nos fornece ar para viver e enfrentar todas essas questões. E ainda assim, como nos ensinado pela filosofia, ler a palavra livres mudando o sentido – da esquerda para a direita – a própria liberdade se manterá presa à sua própria essência servil.
Uma vez discorrido todos esses pareceres realizados sobre a obra já mencionada, é possível resgatar conceitos que estão diretamente relacionados com a arte contemporânea e que nos faz entender e nos aproximar mais ainda dos aspectos que a obra carrega consigo, além dos seus múltiplos sentidos e significados. O advento das novas tecnologias e uso de novos materiais, além da mistura deles, nos faz perceber a ruptura desses artistas com as classificações habituais pré-estabelecidas nas artes de períodos anteriores ao pós-modernismo. Agora, a arte é metal, é gesso, é parede, é galeria inteira. A arte está na intenção e no fazer artístico. Arte é visceral.
Neither – nenhum dos dois (2004), de Doris Salcedo (Colômbia)
REFERÊNCIAS
ARCHER, M. Arte contemporânea: uma história concisa. Ed. Martins Fontes. São Paulo, 2012. Prefácio.
ARGAN, G. C. – A crise da arte como “Ciência Europeia” – Lichtenstein, R. – O templo de Apolo; Warhol, A. – Marilyn Monroe. Cap.7.
DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. Ed.34. Tradução Paulo Neves. 1ª Edição 1998 – 1ª reimpressão 2005.
ROCHLITZ, Rainer. Descrever e avaliar. Texto extraído de: Rochlitz, Rainer. L’art au banc d’essai. Esthétique et critique. Paris: Gallimard,1998, pp.113-117. Tradução Paulo Adalberto Haeser.
Juliana Monteiro é arte educadora, formada no Bacharelado Interdisciplinar e em Licenciatura em Artes Visuais (IAD-UFJF). Carrega em si, desde sempre, a curiosidade e a vontade de explorar as diversas linguagens da arte.
Adorei! Senti cada sensação que você descrevia, enquanto lia o texto. Parabéns belíssima reflexão.