os filhos dos filhos dos teus filhos terão tataranetos e, eles, na angústia e desfragmentação de seus tempos recorrerão a uma memória ausente de seus ancestrais buscando força, entusiasmo e consciência das pessoas cuja história os geraram e que em tempos remotos tinham a dignidade de, — mesmo frente à tanta falta — de conhecimento, de recursos, de tecnologia, nem pensar em esmorecer e construir, através de palavras e cerimônias um lugar seguro e certo e justo onde se viver desta forma tu serás exaltado sem que eles saibam ao certo o que aconteceu Olhe ao redor é assim que se portam os ancestrais dignos perdidos na névoa do inevitável esquecimento num mundo coeso e consciente quando recorridos a trazer, a partir de leves sensações a sabedoria milenar aos rituais O que resta em nós daqueles que nos geraram?
Os avós dos meus avós maternos vieram da Itália de navio; não sei muito mais do que isso, não consigo imaginar muito. Quando tentei, imaginei a vida como nós a levamos sendo imaginada por nossas linhagens no futuro — como somos heroicos quando nossos descendentes nos imaginam! Mas o conselho que se dá, “olhe ao redor, vós sois os antepassados de alguém”, também poderia ser dito a eles, a qualquer um. A vida por trás da névoa.
O que fica é a lembrança construída. Uma coisa que ficou na gente foi o capeletti no Natal. Minha bisavó, que eu não conheci, fazia. E nós aprendemos — com a geração anterior que aprendeu com ela — e ainda fazemos. Apenas no Natal, dá muito trabalho. Fazemos em casa a massa, o recheio, tudo. E esnobamos os de supermercado. Há também a coisa do recheio, só um recheio existe: queijo, gema de ovo, noz moscada e pimenta do reino. O resto é trapaça, invencionice!
Quando minha mãe foi à Itália, conhecer o lugar de onde seus bisavós vieram, esperava encontrar o “verdadeiro Capeletti Italiano”. Quanto a isso, ficou decepcionada. O “verdadeiro” só surgia depois de horas de trabalho, por nossas mãos. Não há prazer do “verdadeiro” capeletti sem a dor nas costas de ter passado o dia os dobrando. E o capeletti lá era insossinho comparado às outras massas.
Só isso? Lembranças imaginadas e capeletti?
Sim, só isso. Entretanto, passar os dias dobrando para depois colher os frutos do trabalho com dor nas costas é exatamente o que fiz desde os meus 19 anos com a publicação artesanal de poesia em fanzines, que são livretos fotocopiados, vendidos a preço de banana na rua. O prazer da comunhão depois do trabalho manual…
É claro que o que sempre me animou foi o “do it yourself” (faça você mesmo) punk. Uma prática anarquista adquirida pela fricção de meus desejos e o presente tecnológico, aquilo que me cerca. Mas acredito que algo tem que vibrar entre os tendões, os ossos e a carne para nossas tendências serem encenadas (reencenadas?).
Entretanto, não pude deixar de polinizar minha imaginação quando, em São João del Rei, assisti à peça do Teatro da Pedra (à época ManiCômicos) chamada Borgobandoballo. Baseada em fatos, a peça contava a história de um grupo anarquista expulso da Itália, formando uma colônia em São João del Rei. Será que tinha algum antepassado meu entre eles, algum anarquista perdido pela Pedra Negra, mais ao sul, de onde meus avós saíram?
Certeza absoluta e intransferível que sim! — na falta de documentação, não há porque segurar a imaginação.
Agora, se a Itália “verdadeira” de onde viemos só pode brotar das nossas mãos no capeletti, o distrito de Pedra Negra em que meus antepassados se instalaram está submerso por uma represa de usina hidrelétrica.
Nenhuma topografia do passado, nesse passado que, não obstante, somos: para os tataranetos dos filhos dos nossos filhos. Nós, que somos tão numerosos primos!
Vinicius Tobias é de Ijaci/MG, e é poeta, contista e editor de fanzines. Entre os anos de 2009 e 2019 publicou e distribuiu de mão em mão seus seis fascículos da série Intervenção Humana, quando estreou e se formou enquanto escritor. Também se entende como um haicaisista, tendo imersão na prática do haicai, gênero poético japonês de três versos e ênfase na experiência com a natureza, onde ele assina os poemas com o nome Mugido. É membro-fundador do grupo Larvas, onde atua desde 2010 com recitais, saraus, performances, publicações, editorações, exposições e produção de eventos. É mestre e doutorando em Ciência da Religião pela UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora, lá estuda a relação entre poesia, música e religiosidade. Autor de “A estrada e o moirão” (Editora Capim-Limão) e “Velas para o Oriente (Caravana, grupo editorial), ambos no fim de seu processo editorial e que estarão sendo divulgados no segundo semestre deste ano. Pode-se acompanhar o autor nas redes pelo seu perfil no instagram @viniciustobiasmugido e pelo blog.