Em fins do século XIX, apareceu uma série de artigos sobre a pintura italiana. Sob o pseudônimo de “Ivan Lermolieff”, Giovanni Morelli desenvolveu um método para atribuir quadros antigos ao verdadeiro dono, a rigor, fazer uma leitura minuciosa a ponto de caracterizar o estilo do artista o reconhecendo, portanto, em sua obra. Seu método consistia na observação de detalhes que passavam despercebidos, tal como lóbulo de orelhas, formas de dedos, enfim. Do mesmo modo compreendemos, quase nos mesmos anos, a busca pelos pormenores no trabalho atribuído ao famoso detetive Sherlock Holmes por seu criador, Arthur Conan Doyle. No ensaio “O Moisés de Michelangelo” (1914), Freud escreveu: “Muito tempo antes que eu pudesse ouvir falar de psicanálise, vim a saber que um especialista de arte russo, Ivan Lermolieff [nosso Giovanni Morelli] (…) havia provocado uma revolução nas galerias da Europa realocando em discussão a atribuição de muitos quadros a cada pintor, ensinando a distinguir com segurança entre as imitações e os originais, e construindo novas individualidades artísticas a partir daquelas obras que haviam sido liberadas das suas atribuições anteriores.”
O que perpassa a metodologia de Morelli, Holmes e Freud? A atenção para os resíduos que são considerados reveladores do próprio espírito humano. Assim, são os sintomas para Freud, o indícios para Holmes e os signos pictóricos para Morelli. Ao fim e ao cabo, são dados indiciários que formariam sobre a ciências humanas em fins do século XIX um paradigma baseado na semiótica. É nesse sentido que Carlo Ginzburg tentou compreender como, historicamente, surgiram disciplinas centradas na decifração de signos variados, dos sintomas às escritas. Em digressão, apresenta mais uma analogia: o homem caçador. Ginzburg irá considerar que, talvez, este seja o mais antigo gesto da história intelectual do gênero humano, em suas palavras, o do caçador agachado na lama, que escruta as pistas da presa.
A decifração do outro não é possível quando há um apagamento dos traços individuais que o diferencia, ou seja, a observação das individualidades é diretamente proporcional ao rigor ou qualidade do resultado obtido em uma pesquisa para o historiador, uma sessão para o psicanalista e uma investigação para um detetive. Esse tipo de conhecimento, a medida em que é desenvolvido, vai se especificando e se distanciando, por consequência, de uma perspectiva generalizante. Dentro dos métodos da História, existe uma via chamada “micro história” e que tem, como um de seus expoentes, o próprio Carlo Ginzburg que buscou, nos processos de Inquisição do século XVI e XVII, por exemplo, dados indiciários e, com isso, descobriu o moleiro Menocchio perseguido pela Inquisição por desenvolver uma cosmogonia que consistia na união de terra, ar, água e fogo que formavam uma massa (o moleiro fez a analogia com o processo do leite para se tornar queijo) e, como os vermes surgiam no processo do leite-queijo, assim surgiam os anjos, por exemplo. Nisso, foi acusado pelo crime de heresia. Esse tipo de pesquisa, além de trazer rupturas com ideias generalizantes tal como a homogeneidade atribuída a “sociedades da modernidade”, demonstra uma individualidade construída e influenciada pelos processos do cotidiano, dos afazeres do dia a dia.
O impacto dessa opção metodológica nas produções historiográficas brasileiras, por exemplo, tem surtido efeito na retomada de memórias outrora marginais pois busca a trajetória de sujeitos e grupos que não eram contemplados dentro do que se entendia por uma “história oficial”, desenvolvida nos séculos XIX/XX para a construção do ideal de nação no Brasil. Desenvolver um olhar para a individualidade em um país que, em determinada medida, foi educado dentro do mito da democracia racial soa até mesmo como uma tendência que nos empurra na contramão dos traços de individualidade. Não apenas no campo das profissões que aqui foram utilizadas como analogia, mas nos próprios pronunciamentos dos ministros do atual governo, enxergamos a sugestão e tendência de uma sociedade brasileira homogeneizada, assim, tudo que é considerado diferente, se torna apenas exceção, o que abre prerrogativa para as falas preconceituosas, classistas, a rigor, a sugestão do atual Ministro da Educação sobre a retirada de pessoas com deficiência das salas de aula com pessoas sem deficiência sob o argumento de que, essas primeiras, atrapalham o processo de aprendizagem; mais, a fala do atual Ministro da Economia ironizando o aumento da conta de luz e questionando “qual o problema da energia ficar um pouco mais cara?” ignorando, portanto, o fato de que 11 milhões de brasileiros nem mesmo acesso a energia elétrica possuem.
É certo que esse tipo de fala e atitudes levadas a cabo pelo governo federal desde o seu início, fazem parte de um plano muito mais amplo e complexo, no entanto, se fundamenta no egoísmo e, num Brasil com Brasis, é impossível governar olhando para o próprio umbigo. Por isso, acredito que o presidente é o próprio golpe e, enquanto ocupar tal posto, continuará golpeando todos os brasis que não cabem em seu minúsculo espírito.
Gyovana Machado é cristã, formada no Seminário Rhema Brasil, graduanda em História pela UFJF, bolsista no LAHES, interessada nas grandes áreas de teologia, política e feminismo.