Nos dias de hoje, observamos estupefatos os acontecimentos de uma guerra que leva mais de quinhentos anos: o sequestro da terra por parte da máquina global dominante.
Nessa operação global, o dever que nos foi dado agora é de ser o celeiro do mundo, de alimentar os povos do planeta. Cultivamos, colhemos e exportamos como bons cidadãos visando o reconhecimento do importante papel econômico que nos cabe na divisão internacional do trabalho, mediante a qual se distribuem as tarefas da Aldeia Global.
A ideia de que somos de um país de grande relevância na tarefa de alimentar mundo é uma grande e silenciosa armadilha na que alguns desavisados caíram, se investindo de um abecedário pragmático recolhido de uma pseudo-erudição econômica que todos conhecemos: o neoliberalismo. É ele que seduz-nos a pensar só a partir dos resultados de um processo que, no longo prazo, traz consequências preocupantes para todas as vidas do planeta.
Sem muito esforço, ficam expostos os interesses: de um lado a exploração predatória da Terra cujo efeito no deterioro planetário não entra na conta dos ganhos imediatistas de um agrobusiness que não tem nada de pop; de outro, um horizonte onde sequer os trabalhadores são objeto da exploração, pois já se visualiza a marcha alegórica e cibernética das máquinas com as quais o próprio homem se tornará, aos poucos, irrelevante.
Dos muitos que se querem apropriar da Terra para a tarefa de alimentar o mundo sem pensar nas consequências nocivas ao planeta, só resta a ingênua perspectiva de que os lucros realizados lhes permitiram usufruir de outras mercadorias que acalmarão o vazio de um ser que consome e se consome nelas. Quando a redonda Medéia passar a conta, a elite abastada não poderá pedir clemencia a essa mãe que não aceita desculpas.
Enceguecidos, patrões e trabalhadores dançam ao ritmo de uma banda que toca uma música muito diferente daquelas que mobilizaram as revoluções e os grandes negócios do capitalismo industrial. A alienação não é mais do esforço humano. A alienação contemporânea extrapola em muito a força de trabalho humana, pois se instala na manipulação direta dos desejos, os quais estão constantemente sendo rescritos mediante o decalque grosseiro de uma intimidade de prateleira.
Acreditamos que nosso íntimo está sob nosso controle, que somos nós os donos das marcas do nosso corpo e nossa mente, porém, se bem não somos uma tábula rasa, de certa forma somos uma tábula editável, que opera de forma similar aos dispositivos de armazenamento digital os quais, a qualquer momento podem regravar, recodificar ou reiniciar suas mídias. A nossa mente racional só recebe os sinais escuros e criptografados dessa lógica que inscreve na nossa intima deriva libidinal aquilo que toma conta das nossas preocupações diárias: temos tarefas a cumprir e como bons cidadãos, postergamos todo o prazer para o final da jornada. Até Rubén Blades[1] escreveu estude, trabalhe, seja gente primeiro, eis ai a salvação, nos indicando o caminho do reconhecimento e das obrigações como passo anterior ao usufruto livre da vida.
Para o cidadão médio, há deveres a cumprir antes de dançar a dança cósmica que tanto recomenda nosso querido Ailton Krenak. Para muitos desses abnegados cidadãos, olhar o céu e dançar no meio da semana, movidos pelo simples desejo de agradecer ao cosmos pela alegria de estarmos vivos usufruindo de cada segundo que dura o tempo, é coisa de desocupados, de gente que não trabalha, que não produz, por que antes de dançar é preciso produzir: temos que ser gente primeiro.
Chega-se a pensar que a defesa dos territórios indígenas é assunto de folgados, não de gente que produz, de gente que entende àquele que produz e defende uma vida produtiva como exemplo de virtude, inclusive – sejamos compreensivos com os ingênuos – chegando a pensar que as máquinas do agro produzem e por isso toda a cadeia técnica merece nossa irrestrita confiança. Mas essa ingenuidade já fora desvendada por Max Webber quando mostrou que o discurso de que só o trabalho dignifica também foi uma armadilha para aquele que se sente culpado por ter nascido e que em função dessa culpa adere à ética do acúmulo; esse asceta que quer mostrar, orgulhoso, que está no pleno controle do desejo de dançar livremente as segundas ou terças-feiras ou de simplesmente dançar outra dança que não seja a dança do acúmulo. Esse controle não só aliena o resultado do trabalho como também aliena o desejo e a vontade de viver.
Os pecadores arrependidos consomem e não gostam de dançar a dança cósmica por que ela os leva ao deterioro inevitável dos alicerces do hegemônico modelo da sociedade capitalista ocidental, pois se a nossa responsabilidade é produzir antes de dançar, dançar antes de produzir é um risco na vida serena de quem escuta o jornal mais do que escuta o próprio corpo.
O trabalho alienado já cobrou seu preço e a alienação está em outro patamar; é a própria vida que não nos pertence mais. Fomos distanciados do mundo real para retornarmos a ele de outra forma. Aproximamo-nos aceitando as recodificações que foram feitas durante nosso distanciamento. O melhor exemplo disso está nas mídias que recortam o real e nos oferecem sínteses do mundo, e assim, vivemos uma vida pela metade onde a fotografia da Amazônia verde parece mais real que o seu próprio desmatamento. Na verdade, só queremos representações de um real manipulado que, transitando entre o hipnótico e o gratificante, nos usurpa o desejo e o reconduz na direção dos interesses da economia libidinal.
Amazônia fica longe e o direito dos povos originários de reivindicar os compromissos constitucionais também soa distante. De fato, estamos muito longe de poder sentir e compreender essa forma de se relacionar com a Terra. E não só isso. O ruído das folhas secas da cidade, o amarelo da grama e o cheiro da queimada não parecem nos afetar diretamente. Esses fatos parecem não estar vinculados ao dia a dia de andar de ônibus, de trabalhar o dia inteiro e depois voltar para casa para descansar do eterno ciclo semanal, mensal, anual dessa roda que gira e gira e que em algum momento nos dá um respiro para deixar que nos sentemos diante do prato de comida que merecemos. O chamam de meritocracia, porém é nada mais do que o outro rosto da alienação.
Se a Amazônia parece estar longe, a cidade também. O asfalto quente do verão – que é o mesmo asfalto esburacado que vemos no inverno – também nos parece um simples pedaço operacional do mundo: um elemento a mais da bricolagem urbana. Fomos disciplinados para viver burocraticamente a cidade: as paredes descoloridas dos edifícios e os telhados marrons formam perspectivas quase descartáveis da nossa trajetória diária. Só nos chama a atenção o que nela se destaca: os textos, as mensagens. Somos capturados pela linguagem dos cartazes (de vez em vez, talvez, por algum rosto amigável), pois em geral, são os letreiros os que nos atraem com a mesma força que um imã atrai o pó de ferro. Almoçamos entre televisores, tomamos cerveja assistindo programas bem conhecidos ou jogos de futebol sempre cativantes. Os cabos desordenados da energia e da telefonia se tornam rabiscos inconvenientes do horizonte, mas não porque interrompem um contínuo perfeito que não requer mais formas do que as nuvens e a chuva, senão porque nos remetem a um problema que já foi resolvido: o mundo sem fio do próximo fone de ouvido. Toda a sinalização da cidade deflagra um hábito enraizado em procedimentos de vida ou morte: sinais verdes ou vermelhos, faixas de pedestres, marcas de estacionamento: mind the gap! Cada passo que damos entre transeuntes se divide entre o avançar destemido ou uma manobra de skatismo humano: há que se decidir rápido entre um desvio eloquente ou um pedido de desculpas por esbarrar com outro corpo que também caminha com a urgência de produzir.
Essa é a nossa selva, nosso território; e, como membros originários, parecemos indefensos perante o avanço da maquinação urbana que nos usa para gerar sua mais-valia. Somos invadidos no nosso íntimo e parece que toda defesa é ilusória: adaptamo-nos rapidamente à norma.
Não temos muito mais poder sobre as ruas, praças e avenidas, pois essas não são mais o lugar de todos dado que todo lugar com seu movimento dentro da cidade se encontra codificado. Todos os comportamentos estão moldados mediante motivos e procedimentos predefinidos. Não temos uma trilha para poder nos perder à vontade. Até os desvios foram impedidos; sequer podemos desejar desvios, atalhos ou demoras, não podemos experimentar solidões nem encontros sob outras premissas que não sejam a de viver de acordo com códigos obrigatórios.
O asfalto é nosso território, porém todo dia é palco de um novo traçado, onde se jogam as sementes de um mesmo axioma: produzir e fazer aos outros produzirem esse mesmo mundo que nos obriga. A alegria é só permitida em migalhas carnavalescas, em pacotes de férias, todos eles adaptados ao tempo e aos negócios do entretenimento. Toda a liberdade do corpo está confinada a esse outro negócio que envolve comer, beber e dançar no limitado tempo do descanso da máquina produtiva.
Claro, não se pode fazer qualquer coisa na cidade, mas entre isso e a forma normativa que impõe a lógica do asceta urbano, há muita distância. Se há uma diretriz ética para nosso território, ela poderia ser a de não limitar a deriva das vidas que a cidade acolhe a título de manter uma única e hegemônica forma de habitar a cidade. Os modos de vida são muitos e todos eles formam a paisagem urbana. A defesa do nosso território consiste em nada mais do que dar garantias para a possibilidade real de poder acolher de todos os modos de vida que nela se expressam. A dinâmica do nosso território exige isso: toda vida vale, todo desejo tem direito a promover seus agenciamentos. A vida que resulta da monocultura do nosso território pode ser nociva para a maioria dos seus habitantes. O que se requer então, é um amplo diálogo, um diálogo com todos os atores, com todas as migrações que conduziram até aqui, com todo os fluxos que vieram se enredar nesse lugar. A identidade da cidade não pode ser um instrumento para garantir a hegemonia de um único modo de existir: ela deve se abrir à dinâmica nômade de todas as vidas e construir assim um fluxo identitário, uma sempre nova forma de afirmar quem somos nós. Não há motivos para que uma forma de existir tenha prioridade perante outra, menos ainda aniquilando as suas expressões. Todas as vidas da cidade são pertinentes para a expressão da sua totalidade.
E perante o sempre possível desejo de não querer que nada mude, para aquele que resiste à expressão das outras vidas, ainda vale a pena perguntar: quem diz que uma muralha cinza tem mais razões de existir que um grafite? Quem diz que um carro tem mais razões para ocupar o asfalto que uma bicicleta? Quem diz que a cidade silenciosa e organizada tem prioridade sobre o barulho e alegria das almas?
Para que ninguém seja surpreendido, saibam que o asfalto, as ruas, as galerias e os parques, são de todos: a cidade é nosso território, nela cultivamos e colhemos nossas existências.
[1] Músico panamenho, candidato à presidência desse país em 1994.
José Aravena Reyes é natural de Santiago de Chile. Músico popular e canta-autor na época, veio para o Brasil a cursar pós-graduação em Engenharia Oceânica. Professor Titular da Faculdade de Engenharia desde 2018, fez pós-doutorado em Filosofia da Técnica e da Tecnologia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Atualmente ministra aulas de Engenharia e Sociedade e Gerenciamento de Projetos na UFJF. Na sua vida pessoal, é discotecário de músicas do mundo. Membro do grupo de Maracatú Estrela na Mata, divide suas pesquisas de Filosofia da Tecnologia com suas outras pesquisas musicais em discos de vinil do mundo que utiliza em suas mixagens e produções autorais de música eletrônica.