O ÓDIO E OS SEUS DESCONTENTES

Uma ideia verdadeira simplesmente porque é verdadeira nunca vence uma paixão,
Somente uma paixão vence uma outra paixão se for mais forte e contrária a ela.

Espinosa

Uma impressão bastante acertada sobre nosso tempo é que “descobrimos” que a política se tornou algo do âmbito da paixão: de repente, a sociedade não se vê de outra forma senão como invadida pelo que há de mais louco e incontrolável entre nós, que excede a própria noção de política como lugar do exercício racional da palavra. Não menos claro pra uma época em que as formas sociais que possuem mais destaque são justamente os nacionalismos, os fundamentalismos, as políticas de identidade, os supremacismos etc.

Mas há de se recuperar o mérito desse insight sem que seja preciso incorrer em argumentos morais sobre aquilo que, dos afetos, se constitui como um borrão irracional e indesejável em nossas mobilizações sociais. Sou tentado a dizer que se trata justamente do contrário: que a realidade social é necessariamente composta por esse borrão, em que as paixões aparecem como demandas sem objetos, um rompante contingencial que aponta a falha que a realidade (organizada, coerente e ordenada) busca tamponar.

Muito se pergunta sobre o lugar do ódio na atualidade, por exemplo. Se levarmos a sério a ideia de que sempre há um quantum pulsional concernente aos afetos no laço social, pode-se arriscar dizer também que sempre houve ódio – antes da civilização, no sujeito. Mas falar sobre o ódio atualmente ainda é um ponto mal tratado, se pensada juntamente com a carência (ou a recusa) teórica em matizar um afeto tão peculiar como o ódio. O comentário de Christian Dunker[1] parece assertivo aqui, quando ele afirma que nosso déficit histórico enquanto comunidade humana foi falhar no direcionamento sobre o tratamento do ódio: na tradição cristã ocidentalizada, o ódio sempre foi lido em chave moral, em suas tentativas frustradas de traduzir ódio em amor; já em outras épocas, o próprio excesso de ódio implicou uma reação desmedida e toda sorte de modus segregatório, em experiências que foram extensamente vividas junto à violência. Mesmo em nossa época, a própria ideia de “discurso de ódio” parece obter sua palavra final com o discurso da “tolerância”, tão cara à esquerda liberal e sua desinflação crítica. Evidentemente, o conceito de “discurso de ódio” serve muito bem para identificar uma postura anti-política (protofascista, no mínimo) na qual a única gramática possível seria a do ódio e mais nada. Mas isso significa uma renúncia absoluta ao ódio? Não poderia ter o ódio um destino mais justo?

No seu célebre “O mal-estar na civilização”, Freud retoma a influência da proposição cristã do ‘amor ao próximo’ como sendo uma fonte produtora de mal-estar, na medida em que esta acabaria por reprimir parte da dinâmica pulsional dos sujeitos – que é, desde sua constituição, ódio. Isso porque, para Freud, não é o amor o afeto original do ser – mas o ódio. O ódio que opera a separação entre o eu e outro, interior e exterior, ao modo mais agressivo que pode. Pois essa separação não é simplesmente um desvio. Ela é o ponto de partida da constituição psíquica. Mais do que isso: o que Freud tenta argumentar é que essa marca que o ódio produz é inerente à experiência coletiva, na medida em que, apesar de seres gregários, carregamos o insustentável peso de ser merda divina[2].

Na teoria lacaniana existe uma distinção muito importante sobre o ódio: ao lado da ignorância e do amor, o ódio não representa apenas um afeto, mas uma paixão, isto é, uma necessidade do ser[3]. Diz-se ‘uma paixão’ no sentido da suspensão da barra do significado sobre o significante, ou o domínio do significado. Essa paixão (chamada “ódio”) é articulada ao Real e não se distingue das suas manifestações mais objetivas como a cólera ou a ira. Ainda mais, temos que a meta do ódio é bastante clara: ela visa a destruição do outro. O outro precisa deixar de existir, ser esvaziado subjetivamente.

Mas o que há nesse outro que ele precisa tanto ser destruído? A ideia de ódio enquanto a exclusão definitiva do outro parece mais clara se observamos o ódio racial, o ódio religioso ou o ódio de classe, nos quais a dimensão do outro aparece como radicalmente perigosa, intromissiva. É como se aquilo no outro que é “mais do que ele mesmo” representasse o núcleo traumático da minha própria identidade, uma espécie de distúrbio fundamental da minha existência perante aquele que se esconde na imagem do corpo do outro. Certa perspectiva do ódio racial parece corresponder a essa lógica: a imagem do outro me desequilibra, e, portanto, precisa ser contida, violentada, reduzida à pó e, ao mesmo tempo, objeto de idolatria. Por isso que uma boa leitura do ódio é perceber que ele é sempre um retorno daquilo que fora eliminado do meu ‘interior’, num tempo mítico onde não existia [eu] nem [outro] e que, para que eu mesmo pudesse vir a existir, precisei rejeitar algo em mim. Assim, a reflexão sobre o papel do ódio para o nosso tempo beira o paradoxal, uma vez que, apesar de ser tomado como algo indesejado – com razão, já que uma gramática de ódio significa, em última instância, o “fim da humanidade” –, o ódio retorna (ou sempre retornará) sob a forma daquilo que em nós precisa permanecer do lado de fora. A virada de chave aqui deve ser precisamente uma articulação necessária entre a função transformativa do ódio, como umas das paixões capaz de ‘cancelar’ o “circuito do ódio”, e seu antagonismo real: o eu e o outro como pontos de cisão interna de cada sujeito/realidade social. Como lidar com a diferença entre o eu e o outro? Veja como as duas respostas de nosso tempo conta com o apagamento dessa diferença: o discurso do ódio e o da tolerância – esse último como exemplo perfeito de política de falta de alteridade, em que o outro é uma espécie de “ser bonzinho que eu nunca preciso lidar de perto”. Na verdade, o ódio precisa ser compreendido no seu potencial de revelação e cisão, abertura e transformação, postulado no limite daquele antagonismo que assombra à nós mesmos – cuja existência em si deve ser demarcada com certa dose de ódio.


[1] “O ódio na psicanálise: Paula Mirhan, Maria Homem e Christian Dunker”, vídeo disponível no Youtube.

[2] Referência à famosa ‘fase anal’ da teoria do desenvolvimento psicossexual freudiana, que possui marca característica da experiência de ódio ao outro, no qual o bebê opera a conquista “psíquica” da rejeição: a merda é a excreção rejeitada que pertence, originalmente, àquilo que há de mais íntimo em si.

[3] Lacan elabora essa ideia em vários momentos, mas de maneira mais eloquente nos seminários I e II. E para ver um comentador que trata extensamente da questão, procurar DIAS, Mauro Mendes (2012) Os ódios.


Micael Correia tem 23 anos e é um escritor não-autorizado. Tem experiência em Psicologia Clínica e se interessa pelas áreas de Psicanálise, Filosofia e cultura popular.


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