Quando a cocaína chegou no Brasil, na virada dos anos 70, ninguém era capaz de imaginar que, em algum tempo, outra droga fosse surgir na cena pública com potencial mais destrutivo. Foi um baque2 generalizado. Entre as grandes elites, a distribuição corria por debaixo de um pano de muita corrupção, que financiava o tráfico de drogas; enquanto nas favelas e nos grandes centros penitenciários, populações inteiras eram condenadas à pobreza endêmica, impulsionada pelo vício, e às disseminações de doenças infectocontagiosas, como quando na epidemia da AIDS, por aplicação venosa da substância viciosa.
Quando o crack – cocaína solidificada em cristais, que é queimada e fumada em cachimbos, muitas vezes improvisados, ou misturada em cigarros – surgiu no alvorecer dos anos 90, em plena São Paulo, a Nova York brasileira, foi como uma tsunami para a cultura estabelecida. O consumo da droga se alastrou como um vírus, uma vez que a substância era vendida a custo mais baixo do que a cocaína refinada (em pó), e seus efeitos eram sentidos quase que imediatamente – 10 segundos após sua inalação.
A partir daí, o crack se tornou a droga dos pobres, populações massivamente negras. Condenados ao inferno do vício, indivíduos se aglomeraram, em São Paulo, na região que era conhecida como “Boca do Lixo”, localizada no bairro da Luz. Por volta dos anos 1995, o local recebeu o nome de “Cracolândia”, um reduto de tráfico e usuários.
Naquele contexto, homens que antes eram responsáveis pelo sustento de famílias inteiras, agora vagavam como mortos-vivos pelas ruas paulistanas; mulheres passavam a se submeter à prostituição em troca da mínima grama da substância; crianças aprendiam desde cedo, no espelho dos seus lares, os caminhos da dependência.
Em meio ao caos e ao desespero pela pedra, uma nova cultura se estabeleceu no centro da capital paulista. É possível dizer, inclusive, que surgiu ali, nas desordens da Rua do Triunfo e da Rua Vitória, um nível de interacionismo simbólico que fez nascer uma outra sociedade, com suas próprias hierarquias e práxis.
LABIRINTOS DA CRACOLÂNDIA
A Cracolândia paulista é uma espécie de labirinto: os sujeitos entram e se perdem. A maioria de seus frequentadores mora nas ruas. O que leva um usuário de drogas até lá é um caminho de pedras, acentuadamente marcado pelo rompimento de relações familiares, pobreza material ocasionada pela venda de bens para consumo de drogas, desemprego, contato frequente com outros usuários (às vezes até como herança familiar) e, é claro, a dependência incontrolável.
A experiência lá é, como relatam os viventes, um inferno. Naquele espaço se produzem estruturas de poder hierárquicas, rituais, linguagens, crimes e símbolos próprios, que organizam um (sub)mundo muito particular para as pessoas que se ambientam na comunidade.
Na Cracolândia, portanto, o silêncio é a marca dos que usam; os gritos, a expressão dos que vendem. Não há, pois, na motricidade da vida do craqueiro3, forças suficientes que sustentem conversas aceleradas; a condenação aos andares em círculos, às nóias4 e ao desejo pulsante por uma pedra a mais, é a realidade dos que convivem com o vício. Só há, nas barracas protegidas por toldos, a voz dos traficantes que negociam, em plena luz do dia, no coração da grande e acelerada São Paulo, gramas e mais gramas de crack. É pela necessidade de um ambiente que reproduza esse ritual que a Cracolândia nunca desaparece.
Para os que chegam, há a surpresa com o primeiro contato frente às dinâmicas do fluxo5. Muitos adictos relatam situações que se desenvolvem em função do crack, como a violência, a fome como companhia constante, a prostituição sempre presente, o aliciamento de menores e a convivência com transtornos psíquicos. É somente com o passar do tempo, o consumo cada vez mais frequente do crack e a posterior incorporação de certos sentidos, que o que antes aparecia como perigo, se reconfigura como a natureza daquele lugar; seus costumes e (des)ordens.
Se há sociedade para os usuários de crack, há linguagem que a sustente. Em todos os relatos de indivíduos que conviveram ou convivem com a realidade das drogas, é possível perceber uma rede de comunicação que se dá a partir da incorporação de novos termos à língua portuguesa – ao que os Racionais MC’s (2002) chamaram de “dialeto”. A linguagem, ali, não aparece apenas como uma representação da realidade, mas como a própria realidade, se tornando capaz de descrever situações, pessoas e atividades que só se desenvolvem naquele espaço.
Além disso, também na comunidade da Cracolândia se organizam os parâmetros necessários para categorizar um novo tipo de contrato social. Assim como nas prisões, existe um espaço de compartilhamento de normas não-escritas que preconiza comportamentos e define reconhecimentos diante de determinado grupo social. Na Cracolândia, quem quer crack precisa pagar para ter, seja com dinheiro, materiais, serviços ou prostituição.
OS NÔMADES DO CRACK
O que é definido como perigo, na Cracolândia, é aquilo que, na sociedade comum, pode ser visto como a representação máxima da atuação das instâncias de poder: o aparecimento das instituições policiais.
Em 2017, a prefeitura de São Paulo iniciou um projeto que está em curso até os dias atuais: a dissolvição da Cracolândia. A partir daquele ano, operações policiais efusivas passaram a ambientar, volta e meia, a Boca do Lixo, com ataques violentos à usuários, prisões de traficantes, apreensão de drogas e até incêndios no local.
Segundo dados do G1, em 2017 existia, na São Paulo pós-intervenções, cerca de oito espaços de distribuição e consumo de drogas semelhantes ao da Cracolândia (na Luz, Baixada do Glicério, Sé, Santa Ifigênia, Santa Cecília, Campos Elíseos, Cidades Tiradentes e Campo Belo), além de outros vinte e dois pontos que passaram a ser conhecidos como Mini- Cracolândias.
Quando digo que existe cultura na sociedade da Cracolândia, é porque, antes de mais nada, é preciso compreender que ela não irá desaparecer nas margens de uma política higienista do Estado. Os nós que ligam a sociedade paulistana à sociedade dos craqueiros se estabelecem,
antes de frente à uma questão geográfico-espacial e de segurança pública, nas bases das hierarquias de raça e classe que sustentam as desigualdades estruturais da cidade. É na carência de acesso à educação pública de qualidade, ao saneamento básico, ao acolhimento das assistências sociais, ao trabalho legítimo e à moradia digna, que nascem os aspirantes à usuários.
Portanto, no berço das políticas assistivistas devem amanhecer os saberes etnográficos. É somente através da compreensão das realidades em confluências, dos sentimentos e sentidos compartilhados e das subjetividades perdidas e construídas em um novo espaço de dinâmicas próprias, que será possível vencer os desafios individuais dos usuários de crack e vislumbrar uma saída para os labirintos sociais da Cracolândia.
NOTAS
1 “24/48” (lê-se “vinte e quatro por quarenta e oito”) é uma expressão utilizada pelas populações de São Paulo e quer dizer “sem descanso”; “a toda hora”; “contínuo”; “sem parar”.
2 Duplo sentido: aplicação de droga na veia e queda brusca.
3 Usuários de crack.
4 Efeito de drogas, geralmente associado a delírios, mania de perseguição e paranoia.
5 Segundo a linguagem dos usuários, é o lugar em que sujeitos usam droga ao mesmo tempo.
REFERÊNCIAS
A DROGA. Ministério da Justiça, s.d. Disponível em: <https://www.novo.justica.gov.br/sua- protecao-2/politicas-sobre-drogas/backup-senad/acervo-historico/programa-crack-1/a- droga#:~:text=No%20Brasil%2C%20a%20droga%20chegou,coca%C3%ADna%20refinada% 20(em%20p%C3%B3)>. Acesso em 30/09/2021.
BROWN, Mano. Negro Drama. In: RACIONAIS, MC’s. Nada Como Um dia Após o Outro, 2002.
CASTELLANO, João. Cracolândia. El País, 2017. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2017/06/24/politica/1498315665_513345.html>. Acesso em 30/09/2021.
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GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
GUIMARÃES, Juca. Cracolândia. R7, 2017. Disponível em: <https://noticias.r7.com/sao- paulo/onda-de-devastacao-pelo-crack-comecou-ha-27-anos-em-sao-paulo-19052019>. Acesso em 30/09/2021.
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TOMAZ, K.; SOARES, W. Cracolândia se expandiu da Luz para mais 7 bairros de SP e pode aumentar, diz MP. G1, 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/sao- paulo/noticia/cracolandia-se-expandiu-da-luz-para-mais-7-bairros-de-sp-e-pode-aumentar- diz-mp.ghtml>. Acesso em 30/09/2021.
Victória Henry é graduanda no Interdisciplinar em Humanidades pela UFBA, digital marketer, bolsista UFBA no projeto “Da Monocultura à Pluricultura do Conhecimento: Ciência e Saberes Tradicionais de Cura e Cuidado na Formação em Sáude”, pesquisadora em Ciências Sociais e poetisa.