“Suponho que você vá escrever sobre mim”. Esse não é o jeito mais tradicional de se puxar assunto numa mesa de café, e com certeza não é o mais efetivo para garantir que alguém escreva realmente sobre você. Na realidade, eu poderia estar escrevendo qualquer coisa ali. Seis da tarde de uma quinta-feira, na mesa mais afastada, computador aberto e virado quase todo para mim. Eu detesto ser incomodado, quanto mais por alguém que eu não conheço, mas confesso que aquela mulher tinha o excesso de confiança em si mesma que fazia com que habitasse no exato limite entre a certeza e a completa falta de senso. Levantei os olhos sem muita expectativa.
“Você escreve histórias, eu sei. Tem cara de cdf”.
“E por acaso eu não posso estar fazendo a retificação do meu imposto de renda?” – O que de fato é uma questão relevante, talvez eu fosse mais feliz atendendo ao leão.
“Não. Você não faria isso em público. Olhei e tive a impressão de te conhecer. Acho que vi você em algum vídeo na internet, falando sobre o que não me lembro mais. Eu gostei. E aí entro aqui um pouco mal e te encontro. Curioso isso tudo, não acha?”
Adiantava pouco qualquer discordância porque, enquanto falava isso, já tinha puxado a cadeira e sentado à mesa comigo. Fosse uma mesa para quatro lugares e estaria relativamente bem, mas era daquelas pequenas, feitas para se assentar só, com duas cadeiras mais por educação com o restante do mobiliário do que por utilidade. Mesmo conhecidos de muito tempo não se sentam em mesas de dois lugares a não ser por excesso de necessidade. Melhor permanecer sozinho, ou usar aquele lugar com a esposa, a mãe, a filha. Estava eu ali, curioso, irritado, levemente acuado, mas sem dizer a ela que se levantasse.
“Acontece que eu não te conheço, moça. Não me importo que esteja aqui, na verdade eu fico feliz até, por ter me reconhecido, mas daí escrever sobre você eu não sei. Precisaria de um mote”.
“Eu te dou. Qual mote você quer? Sou casada, tenho uma filha linda, trabalho, pesquiso os preços da gasolina e de vez em quando escrevo algumas coisas também. Isso é o suficiente? Pode ser que não seja, afinal, você não vive essa vida perto de mim, você não me conhece. Para escrever sobre meu casamento teria que conhecer meu marido, e minha filha, e dar uma volta de carro na cidade ao meu lado. Nenhuma dessas coisas você vai conseguir fazer na noite de hoje. Melhor mudar o plot.”
E ela continuava ali. Pediu um capuccino brasileiro com um pedaço de bolo de banana fit. Não prestei atenção, mas ela disse que tinha alergia a lactose ou glúten ou farinha, qualquer coisa dessas. Estava na minha frente como uma esfinge estranha falando com total naturalidade sobre coisas que eu não sabia por quê, me prendiam a ela. Quando chegou eu pensava em como estender uma crônica sobre Pedro III, da Rússia. Depois de começar a ouví-la, tive a impressão de que ninguém quer saber sobre esse ou qualquer outro tzar. Na cadeira, me olhava com brilho nos olhos uma mulher comum que esbarrou comigo, só. Uma estranha coincidência dessas que só acontecem nas novelas ou nas maldições.
“Se sua vida não é o enredo, sobre o quê eu escreveria? Primeiro, qual o seu nome?”
“Luisa, igual aquela da música do Chico Buarque.” – Uma especificidade bastante pertinente, afinal. “Escreve então sobre uma ilha, sobre uma ilha desconhecida. Um casal naufragou ali e agora precisam decidir o que fazer. Ela deseja entrar na mata, conhecer os nativos, construir uma casa na árvore. Você já assistiu A Lagoa Azul? Sei que é cafona, mas é por aí. Ele, por sua vez, deseja construir um barco para sair da ilha. Exatamente! Escreve sobre isso, mas escreve de uma forma inteligente. Pode colocar algumas pitadas de religião também, como se para sair ou ficar na ilha eles precisassem descobrir sobre um deus novo, diferente. Você está entendendo?”
“Estou sim, pode continuar” – Na verdade eu entendia nada, mas estava me divertindo. Melhor ainda. Estava descansando, e tão à vontade como não me sentia desde muitos anos atrás.
“Eu não sei como funciona essa história de escrever textos, mas eu penso que sempre fica mais interessante se tiverem algumas coisas, três coisas. Romance, mistério e aventura. A parte do mistério eu já te contei, você pode usar a coisa de deus. O romance é entre os protagonistas, mas não só entre eles. Quem sabe como fica se um dos dois tiver pensamentos estranhos?”
“Pensamentos estranhos?”
“Isso, se lembrarem de outras pessoas na ilha, você sabe como é. Ou então, se por não se decidirem em ficar ou partir, se estranharem, não porque não se amam, mas porque se amam de um amor já esvaziado de improvisos.”
“E como terminam eles? Juntos, afogados, fora da ilha?”
“E lá sei eu? Mas não tem como saber, a história ainda não aconteceu. Na medida em que for escrita, a gente descobre” – E, dizendo isso, ela entrava com os dois pés no terreno do meu modo de escrever, histórias que começo sem saber onde terminam. Enquanto meus dedos tocam as teclas do computador, as personagens ganham vida e morte mais por desejo delas que pelo meu. Criatura envolvente, essa Luísa.
“Uma vez vi em um filme, não sei se foi do Indiana Jones, uma coisa com uma escada onde o herói devia subir, mas só era possível se alguém segurasse. Lá em cima estava uma pedra preciosa, um ovo, não sei. Mas se você conseguir colocar essa parte, pode funcionar como a aventura. O que você acha? Não parece muito ruim. No fim, penso que o título poderia ser O conto da ilha desconhecida, ficaria bom?”
“Esse texto já existe, Luísa, foi escrito pelo Saramago.”
“Bosta. O meu ficaria bem melhor, eu acho. Enfim, quem escreve é você. Não vai ser difícil criar outro nome.”
Depois dessas síntese, ela ainda ficou me olhando e falando sobre mil e uma coisas diferentes, cada uma delas de um jeito que misturava alquimicamente uma certa selvageria com pitadas de sensibilidade. Fosse eu apostar, diria que trabalhava com algum tipo de bichogrilice da contemporaneidade, porque vez ou outra dizia coisas como “te aceito”, “joga para o universo”, “te acolho”. Expressões, todas elas, suficientemente fortes para me fazer encerrar uma conversa e acender um cigarro. Ali não, eu ria. Na verdade, me peguei rindo de canto de boca em muitos momentos. Por algum mistério, eu comecei a sentir que conhecia aquela mulher desconhecida.
Não marquei no relógio, mas conversamos intensamente por três horas, que poderiam muito bem ser três semanas, não faria a menor diferença. Eu adorei tudo aquilo, tanto que ainda voltaria ao mesmo café e escolheria deliberadamente aquele mesinha desconfortável mais um sem número de vezes para esperar que ela voltasse ali e se sentasse novamente e dividisse comigo o peso de beber café só.
Pedimos as contas e ela voltou a dizer.
“Depois dessa conversa toda, você vai escrever sobre mim?
Eu estava dramática e toscamente fisgado por aquela completa desconhecida que me aqueceu o coração, mas não dei o braço a torcer.
“E por que eu deveria?”
“Porque eu fui com a sua cara logo, e seus braços parecem abertos demais. Quando é assim, ou eles viram colo, ou ponte ou palavra.”
“Pois então eu vou escrever sobre você.”
“Por qual motivo?”
“Pelos três”.
Nos despedimos naquela noite, trocamos telefones. Chegando em casa, eu contei a história para o meu cachorro, que riu de mim como ele ri do passarinho tomando banho na tigela de água. E foi assim que tudo aconteceu.
Não sei se está por aí, Luísa, mas este aqui é o seu texto.
Vinícius Lara é psicanalista, historiador, fotógrafo amador e um apaixonado pelo absurdo.