Dentre as obras legadas por Alfredo Ferreira Lage, fundador do Museu Mariano Procópio, à Biblioteca da instituição, inaugurada em 1939, encontra-se um exemplar do Álbum das Glórias. Produzida pelo caricaturista português Rafael Bordalo Pinheiro em parceria com escritores portugueses, a obra totaliza 39 números, que foram publicados entre os anos de 1880 e 1883 e em 1902. Cada edição é composta por uma caricatura e um texto que, juntos, revelam uma determinada interpretação sobre um indivíduo ou uma instituição. O Álbum das Glórias apresenta, predominantemente, personalidades e instituições de Portugal e constrói, de forma crítica, um “retrato” da sociedade portuguesa do século XIX. Entretanto, a publicação inclui alguns personagens brasileiros: Joaquim Saldanha Marinho, Lopes Trovão, Luiz Guimarães e d. Pedro II, que figurou na edição de número 5, publicada em maio de 1880.
Na caricatura produzida por Bordalo Pinheiro, o segundo imperador do Brasil está trajando sobrecasaca, calça e sapatos. Com a mão esquerda, que está atrás do corpo, segura uma mala da qual cai o manto imperial. Sobre a cadeira que está em cena, observa-se a coroa e o cetro do monarca. Através da representação da vestimenta de d. Pedro II e da coroa, cetro e manto imperiais, três elementos diretamente relacionados à ritualística monárquica, o caricaturista faz uma crítica à construção da imagem de d. Pedro II como um “monarca cidadão”, avesso às pompas do poder, mas detentor de privilégios oriundos de sua posição. Dessa forma, Bordalo assinala a contradição existente entre os termos “monarca” e “cidadão”. Além disso, o caricaturista sugere um certo desinteresse do imperador, pronto para mais uma viagem, pelo seu “ofício” e pelas questões de Estado.
Bordalo Pinheiro também aborda a construção da imagem de d. Pedro II como um “monarca ilustrado”, afeito às artes, ciências e letras. Nesse sentido, a postura do monarca brasileiro chama a atenção, já que a mão direita sob o queixo, a cabeça levemente inclinada para trás e olhar direcionado para cima remetem ao ato de pensar. Abaixo do desenho, lê-se a expressão “já sei, já sei”, que procurava definir o caricaturado. Desse modo, Bordalo representa o imperador como um chefe de Estado mais interessado nas diversas áreas do conhecimento do que em temas políticos e sociais importantes para a sociedade brasileira e os rumos do país.
O texto satírico que acompanha a caricatura foi assinado por “João Rialto”, pseudônimo do escritor português Guilherme de Azevedo. Intitulado “Sua Majestade o Imperador do Brasil”, o texto inicia-se com a seguinte afirmação: “É hoje o único imperador americano, gozando da suprema vantagem de ser, ao mesmo tempo, no resto do mundo, um imperador único” (grifo do autor). Assim como na composição de Bordalo Pinheiro, Azevedo versa criticamente sobre a relação dos termos “monarca”, “cidadão”, “democrático” e “ilustrado”, apontando dualidades e sugerindo a existência de um desinteresse de d. Pedro II por temáticas realmente relevantes para o país.
Dessa forma, o autor se refere ao imperador brasileiro como o “sr. d. Pedro de Alcântara, conforme ele se chama quando viaja na Europa de chapéu baixo” e destaca que “todos os leitores conhecem de sobra a vida e obras do augusto personagem […] para dispensarem a futilidade de ouvirem contar outra vez como ele veio ao mundo, como engatinhou pelos degraus do trono, e como, por direito hereditário, ocupou o lugar que, nas horas vagas, está sentado no sólio [trono] brasileiro”. “João Rialto” caracteriza-o, ainda, como um príncipe ilustrado, que “toma logo pela manhã, ao levantar da cama, uma gemada feita com o último ovo posto pela ciência, de maneira que sabe primeiro do que ninguém o princípio e o fim de todas as coisas […]”. Ademais, destaca que “visto por fora é um reflexo exato da constituição”, mas que “visto por dentro, os médicos que o têm observado dizem que Sua Majestade tem a exata conformação de um autocrata”.
A figuração de d. Pedro II e outros brasileiros no Álbum das Glórias denota que, na visão dos intelectuais que contribuíram com a obra, a análise do perfil desses indivíduos era relevante para a compreensão da sociedade portuguesa do século XIX e a reflexão de temas que estavam em pauta tanto no Brasil quanto em Portugal. Ao satirizarem o monarca brasileiro, tio do rei português d. Luís I, Bordalo Pinheiro e Guilherme de Azevedo teciam uma crítica às estruturas políticas e sociais não apenas brasileiras, mas também portuguesas.
Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) veio para o Brasil em 1875. Quatro anos depois, após sofrer dois atentados, provavelmente, em virtude do caráter do seu trabalho, retornou a Portugal. Em terra brasileira, o caricaturista português atuou como colaborador nos periódicos O Mosquito, Psit! e O Besouro. Através deles, satirizou a situação política e social do império brasileiro e apontou as “mazelas” da monarquia, compreendida pelo artista como um regime oposto aos valores da democracia e liberdade. D. Pedro II foi significativamente retratado pelo caricaturista, que já em 1872, havia publicado o álbum Apontamentos sobre a Picaresca Viagem do Imperador do Rasilb pela Europa, referente à primeira viagem do monarca brasileiro pelo continente europeu. Por sua vez, no momento em que a edição relativa a Pedro II no Álbum das Glórias foi publicada, Guilherme de Azevedo (1839-1882) atuava como correspondente do jornal carioca Gazeta de Notícias, em Paris. Vale salientar que em 1880, ano em que o Álbum das Glórias foi lançado, Bordalo Pinheiro e Guilherme de Azevedo já haviam trabalhado juntos em A Lanterna Mágica (1875) e fundado O Antônio Maria (1879-1899), ambos periódicos portugueses.
Através de compras em leilões e recebimento de doações, Alfredo Ferreira Lage reuniu um número significativo de objetos relativos à história e memória do império brasileiro. Oriundo de uma família da elite oitocentista bem relacionada na corte brasileira, atuou como um guardião das memórias da monarquia e da família imperial durante as primeiras décadas do regime republicano. Logo, a presença do Álbum das Glórias dentre as obras que deram origem à biblioteca do Museu Mariano Procópio é interessante, uma vez que caricatura e texto dessacralizam a imagem de d. Pedro II, figura pública e de poder transformada em objeto de riso e, consequentemente, de reflexão.
De certa forma, a obra funciona como um contraponto à narrativa encontrada em outros itens bibliográficos e documentais colecionados por Alfredo, os quais contemplam a trajetória do segundo imperador do Brasil como um monarca cidadão e ilustrado. Esse fato se torna ainda mais curioso quando constatamos uma caricatura produzida por Rafael Bordalo Pinheiro no álbum de autógrafos de Alfredo Lage. O desenho é datado de 21 de agosto de 1899, ano em que o português, que havia iniciado sua atuação como ceramista em 1884, retorna ao Brasil para expor algumas de suas cerâmicas – dentre elas, a famosa Jarra Beethoven. No autógrafo, Bordalo Pinheiro, que se autorretrata ao lado dos músicos portugueses Arthur Napoleão e Viana da Motta, registra: “Ao Exmo. Sr. Alfredo Ferreira Lage e aos grandes artistas Arthur Napoleão e V. Motta o seu maior admirador e velho amigo Rafael Bordalo Pinheiro”.
Referências:
BRITO, Rômulo de Jesus Farias. Um traço sobre o Atlântico: o Brasil na obra caricatural de Rafael Bordalo Pinheiro (1870-1905). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2017. (Tese de Doutorado).
MUSEU BORDALO PINHEIRO. Disponível em: <https://museubordalopinheiro.pt/rafael-bordalo-pinheiro/>. Acesso em: set. 2021.
PINHEIRO, Rafael Bordalo et al. Álbum das Glórias. Lisboa: Tipografia Editora Roccio, 1880-1902.
PINTO, Manoel de Sousa. Rafael Bordalo Pinheiro – O caricaturista. Lisboa: Livraria Ferreira, 1915.
Priscila da Costa Pinheiro é graduada e mestre em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professora da Secretaria Municipal de Educação de Juiz de Fora. Atua como historiadora na Fundação Museu Mariano Procópio, dedicando-se à pesquisa e difusão do acervo arquivístico e bibliográfico da instituição.