D. Pedro II, ou aquele quase sempre chamado – equivocadamente – de pai de Pedro I, teve uma educação bastante disciplinada e rígida na infância. Na sua rotina diária, muitos exercícios de caligrafia. Num deles, repetia a frase: “A felicidade é um hábito”.
Menino de infância simples e educado na roça, estive longe, é claro, de receber uma educação próxima àquela recebida pelo “Pedrinho” na infância. Mas lembro-me perfeitamente bem da professora da antiga primeira série do primário pegando no meu pé por causa dos meus garranchos: “Sua letra está uma negação”. Depois, vieram os carimbos “meigos”: um coração chorando e dizendo “Estou decepcionado”. Pra completar, não consegui me alfabetizar na primeira série. Consequência: fui reprovado. Um fato frustrante, mas que me impulsionou a caminhar depois, apesar de me cobrar demais em vários aspectos. E a primeira cobrança era a caligrafia, a famigerada caligrafia. Sempre ela. Cresci me cobrando pra ter uma letra elogiada. Mas, se de um lado, a professora me constrangia por talvez não saber lidar com a situação, por outro lado, eu tinha em casa uma pessoa que me inspirava a ser melhor naquilo que tanto me frustrava: mirava-me na linda letra da minha irmã mais velha, a Aninha, professora de Língua Portuguesa.
Depois de formado em História, quando comecei a trabalhar com documentos da Família Imperial no Museu Mariano Procópio, lembro-me de ter ficado impactado com a letra de d. Pedro II aos 7 anos de idade. Certa vez, numa palestra que proferi na Estácio, ao mostrar no datashow a reprodução de um exercício de caligrafia do futuro imperador do Brasil, um rapaz me perguntou: “isso é impressão?”, tamanha a simetria da letra. Na época em que ainda havia a Revista de História da Biblioteca Nacional, que até hoje é muito usada pelos professores de educação básica pelo país afora, resolvi publicar, em parceria com a minha amiga Priscila Pinheiro, um artigo sobre os exercícios de caligrafia de d. Pedro e sua rotina de estudos. Foi meu primeiro artigo pra essa revista, que chegou a ser utilizado, inclusive, por colegas professores pra tratar de aspectos relacionados à formação de um menino que se preparava para ser imperador.
Pode parecer algo fútil, mas a questão das caligrafias continuou me perseguindo. Em minhas pesquisas sobre literatos brasileiros da virada do século XIX para o XX, dentre eles o Belmiro Braga, seus comentários sobre a caligrafia continuaram me chamando atenção. Nas memórias de Belmiro, por exemplo, ele enfatiza os benefícios que o investimento na caligrafia lhe trouxe, fazendo-o conquistar o respeito dos professores na escola e abrir portas no comércio, na parte de escrituração mercantil. Detalhe: o vate se tornou tabelião. O tabelião que, inclusive, em 1910, lavrou a escrita do sítio que meus tataravós portugueses compraram no distrito de São Pedro de Alcântara (atual Simão Pereira). O contrário ocorreu com o colega Lima Barreto, que tinha fama de “ostentar” uma letra que mais parecia uma barata passeando sobre uma folha em branco, após mergulhar-se na lata de tinta. Letrinha complicada mesmo! Fiquei horas pra decifrar uma carta sua. Inclusive, a historiadora Lília Schwarcz afirma, no livro Lima Barreto: triste visionário, que Lima quase perdeu a vaga de amanuense no Ministério da Guerra por conta da nota ruim que tirou na prova de caligrafia. Se a prova de conteúdos foi um sucesso, a de caligrafia foi uma lástima.
Um amanuense com letra “disforme” e desarmônica é um paradoxo, assim como ter um Lima Barreto trabalhando no Ministério da Guerra. Mas está aí uma prova de que letra não é sinônimo de inteligência. Não mesmo! Mas que eu continuo sendo um cultor da “boa forma”. Ah! Continuo! Mesmo em tempos tecnológicos, continuo me esforçando pra ter uma letra, digamos, harmônica. Vixe! Talvez eu não tenha conseguido resolver o trauma da infância… Talvez esse seja um dos meus traços conservadores… Talvez seja essa uma habilidade dita “feminina” que eu tenho… Mas que comentário machista, hein?! Por que só se espera que as meninas tenham letra bonita? Talvez isso tenha a ver sobre o quanto as mulheres sofrem por serem mais cobradas do que os homens quando o assunto é estética. Mas, afinal, o que é o “belo”? Pergunta difícil, né?! Recuso-me a respondê-la nesse momento. Nem o teclado do computador, muito menos a velha e boa caneta deslizando sobre o papel me encorajam a verbalizar uma resposta. A letra me tem saído tremida ultimamente. Sempre desconfiei que a caneta é a impressora de nossa alma… O fato é que continuo sem saber se a felicidade é, realmente, um “hábito” – como repetia o “órfão da nação” num de seus monótonos exercícios caligráficos. Mesmo sendo traumático, ou exatamente por isso, o primeiro ano escolar habitou e habituou minha memória. E, de certa forma, talvez isso me tenha – para o bem ou para o mal – feito me cobrar na busca de uma utópica e ilusória perfeição, de uma beleza talvez inalcançável.
Sérgio Augusto Vicente é Professor de História e historiador. Graduado, mestre e doutorando em História pelo PPGHIS/UFJF. Atualmente, trabalha no Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora – MG. Dedica-se a pesquisas relativas ao campo da história social da cultura/literatura, sociabilidades, trajetórias e memórias.