SOBRE MÃES E DOBLÔS VERMELHAS

A minha mãe sempre gostou de Doblôs – aquelas famosas minivans que a gente vê na estrada ora ou outra. Quando ela avistava uma percorrendo o horizonte trêmulo, dizia: “um dia a gente vai ter uma Doblô, tu vai ver”. Depois dessa frase, seguia-se um monólogo sobre os benefícios que a Doblô poderia trazer para nós, desde viajar em família até esfregar na cara dos vizinhos o fato de termos um carro decente (por que não?). Só havia um detalhe: tinha que ser da cor vermelha. Era isso, ou nada feito. Assim, eu me colocava a sonhar com a promessa de felicidade sobre quatro rodas: um quadradão vermelho ambulante, sete assentos (dois deles reclináveis), faróis maiores polielípticos de dupla parábola e muitos outros artifícios que só amantes de carros poderiam explicar.

Não pude evitar toda essa lenga-lenga saudosista para dizer que há umas duas semanas eu estava andando de carro com a minha mãe, as duas absortas em seus mundinhos imaginários, quando vi uma Doblô passar do nosso lado. Primeiro senti nostalgia, depois decepção: ela estava suja de lama seca, parecia cair aos pedaços, não suscitava encantamento e, por último, mas não menos importante, era verde-musgo; completamente ordinária. Essa percepção poderia ter sido facilmente descartada nos meandros da minha mente se não fosse pela memória da minha mãe falando sobre Doblôs vermelhas.

Nós duas jamais tivemos a maldita minivan, muito pelo contrário, continuamos com um Palio Weekend de 2008 que precisa de reparos todo mês (sem exceções). Nós não viajamos para lugares incríveis; nada mudou. Nada, exceto pelo fato que os anos nos passaram para trás, nossos rostos marcados pelo peso das memórias, e, como a Doblô verde-musgo, nos sujamos e nos machucamos. Nunca foi sobre carros, até porque eu não entendo de carros. Mas sobre a minha mãe eu sei um pouco.

A minha mãe era uma sonhadora um tanto ingênua, que transplantava as suas idealizações para dentro do meu coração, e, assim eu fui crescendo, meio bitolada. Acontece que em dado momento da vida você percebe que a sua mãe não tem mais ambições e a história da Doblô fica no passado, imaculada. Você percebe que sua mãe é um indivíduo como qualquer outro, com falhas e desvios de caráter. Você percebe a distância que lhe separa da sua mãe, embora estejam no mesmo aposento. “Um dia a gente vai ter uma Doblô, tu vai ver”; a frase ecoa no recôndito do seu cérebro. Um dia a minha mãe vai morrer e eu não vou poder compartilhar o silêncio com ela e gritar com ela e odiar ela e querer matar ela e dizer o quanto eu a amo apesar de tudo. Como a porra de um carro ia nos proteger das inevitabilidades da vida?

O motor dos automóveis pifa, o coração das pessoas para de bater e eu tento, inutilmente, segurar tudo e todos com uma barragem invisível. Nós queremos ser a Doblô vermelha, imponente e promissora, mas acaba que somos frágeis e falhos feito a Doblô verde-musgo, que em questão de tempo será descartada nas profundezas abissais dos carros obsoletos. Será que as pessoas sentem falta dos seus carros obsoletos? (Ou seriam os sonhos obsoletos?) Um dia a gente precisa se despedir da mãe, dos velhos amigos e dos carros que cruzam a avenida. Talvez não haja dor maior que a impermanência, com a única constante sendo o “adeus”. A visão da Doblô real contrastando com a Doblô idealizada; adeus. A minha mãe envelhecendo; adeus. A vida nos passa para trás como carros cortando o horizonte; restam as reminiscências idílicas.

Seria bonito encerrar este texto dizendo que no futuro eu vou ter uma Doblô vermelha para levar a minha mãe a passeios durante seus últimos sopros de vida, pois, dessa forma, eu levaria os leitores à loucura e eles pensariam: “isso foi emocionante…”, mas seria mentira, afinal eu sou escritora e provavelmente não terei um puto para comprar uma minivan, assim, o máximo que posso fazer é criar a imagem da Doblô por meio da grandiosa arte da literatura. Ao longo do texto, eu disse que a única constante era o “adeus” e eu não quero retirar isso, entretanto, acrescento que escrever é uma maneira de perpetuar o efêmero na sua própria redoma de eternidade. É contraditório, se fosse diferente não seria real. Para dar conta do real e do ilusório, surge isto aqui que eu não sei dizer se é uma crônica ou um amálgama de divagações sem sentido, mas sei que fala sobre mães e Doblôs vermelhas.


Valentina Prado é escritora desde os 12 anos de idade, embora só tenha se assumido como tal em 2021, durante o curso de Escrita Criativa na PUCRS. A autora é paulistana, nascida em 2003, e vive em Porto Alegre desde 2017. Ama livros, filmes, pinturas e tudo o que a arte pode oferecer. Escrever a assusta, mas a necessidade de se expressar fala mais alto.


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