A minha criança me começa a menina que eu fui, aos seis anos, assistiu ao nascer do mundo quando aprendeu a ler. Estava sempre esfomeada por biscoitos de polvilho e frases aprendeu a ler as placas o nome dos bairros os outdoors os grafites ler a cidade de dentro de um ônibus também lido. Eu comemorava entender os rótulos de qualquer embalagem os recados na entrada do prédio os anúncios na televisão as mensagens nas camisas das pessoas. Lembro da animação travessa em desvendar as estantes do papai me demorando em suas anotações de rodapé cabia poesia na literatura da engenharia em bisbilhotar as agendas da mamãe nasciam os dois em seus silêncios com segredos talvez nunca revelados nas conversas de casal quando eu ia para o quarto e os gritos rompiam qualquer leitura. Quando eu tinha um livro em mãos me tornava invisível os adultos ao meu redor me esqueciam com as palavras e eu que até preferia a ficção experimentei o sabor amargo do real. Fomos eu e as palavras atravessando os tempos sonhando juntas éramos irmãs destinadas aos desentendimentos principalmente quando me aparecia um exórdio, fenecido, vesânico. Parei de ler até os bilhetinhos no banheiro da escola durante a separação dos meus pais foram os livros de engenharia para um lado as agendinhas para o outro e nas duas casas eu não lia eu flutuava no vazio me perguntando será que os segredos sabem que agora não dividem a mesma prateleira? Eu não sei se voltei a ler ou se precisei escrever para recuperar o encanto dos relógios perdendo tração diante das rimas. Quando me ponho a escrever debruça em mim a menina ansiosa para nascer uma miúda invenção convidando a sonhar.
Fernanda Zeloschi é estudante de Psicologia, escritora teimosa e acredita nas faíscas do afeto através do @fazerafetar