É fácil a arte pública passar batida pelo seu principal público, os cidadãos. Às vezes, é muito pedir para que seja diferente: frequentemente ela se camufla no cotidiano da cidade, existindo em espaços previsíveis. Podem até nascer em tom de novidade, mas logo viram mais um detalhe no “mais do mesmo” do dia a dia. Falo deles mesmo, as figuras carimbadas nas praças e memoriais públicos: bustos, estátuas, monumentos. Por mais que geralmente possuam uma natureza impositiva, logo a cidade se acostuma com suas narrativas, que se conformam com o espaço urbano estabelecido. Mas não é a realidade de todo tipo de arte pública.
É importante fazer essa distinção: existem obras que ativam, transformam e conversam com o espaço urbano de formas distintas. É também o que diz Mick O’Kelly1, pesquisador irlandês que diferencia a “arte pública”, que é aquela que acontece com a permissão do Estado, geralmente monumental e autoritária. e a “arte no espaço público”, que acontece independentemente de permissão é contextual, dependente do entorno para ter seu sentido. É sobre esse segundo tipo que falarei aqui, sem procurar esgotar as possibilidades, mas iniciando uma discussão.
É esse tipo de arte mais contextual e intervencional que consegue produzir relações múltiplas e imprevisíveis com aspectos do espaço público. O social, o político, o econômico e o formal atravessam obra e lugar, criam uma atmosfera própria que justifica a presença daquele projeto ali. Em outras palavras, a arte no espaço público nunca é simplesmente instalada ou criada num local: ela transforma, é transformada e deixa ver novidades naquele espaço.
Se algo existe em determinado local, é por que alguém permitiu?
Em qualquer conversa sobre arte no espaço público, é difícil não lembrar do caso de Tilted Arc de Richard Serra (1981-1989) como um exemplo de como uma obra pública revela as camadas que puxam os fios do que acontece (ou não) na cidade, o que pode ou não existir ali e qual é a responsabilidade do poder público nessa dinâmica. Tudo isso se descobriu indo além da intenção inicial de Serra.
Em 1981, a Federal General Services Administration, órgão público dos Estados Unidos que gerencia espaços públicos, encomendou de Richard Serra uma escultura para a General Plaza, em Nova Iorque. Serra seguiu a sua poética, já conhecida e celebrada, e criou uma obra pensada para aquele local específico: um arco de aço corten medindo 37 metros de comprimento, 3.7 de altura E 6.4 de espessura, que cortava a praça pelo meio, alterando fortemente a paisagem e o próprio fluxo de passagem pela praça.
Não ficou muito tempo sem “incomodar”. Em 1985, um conselheiro municipal em Nova Iorque propunha fazer um referendo para os eleitores do distrito em St. Louis decidirem se a escultura deveria continuar na praça ou ser removida. O presidente do conselho, Thomas Zych, dizia: ‘Eu acho que muitos membros do conselho disseram silenciosamente: eu não gosto disto, mas quem sou eu para julgar o que é arte? Agora alguns estão dizendo que estes pedaços de ferro não são arte, só estão causando problemas de manutenção e é um valioso pedaço de propriedade que deveria ser desenvolvido.” 2
Em 17 de março de 1989, Tilted Arc foi cortada em pedaços, removida da Federal Plaza, e levada para uma garagem no Brooklyn, depois de uma longa batalha judicial que envolveu o próprio Richard Serra e seus advogados defendendo a obra em seu local original. Não adiantou, pois foi a própria Federal General Services Administration, que encomendou o trabalho pela primeira vez, que bancou a sua remoção. “É uma revolução no nosso pensamento que o espaço aberto em si seja entendido como uma forma de arte e que deve ser tratado com o mesmo respeito com o qual as outras formas de arte são tratadas.”3 disse William Diamond, presidente da FGSA, defendendo a decisão da remoção.
Tilted Arc morreu naquele dia, já que tinha sido pensada especificamente para aquele lugar. Assim pensava o próprio Richard Serra. “Eu quero deixar perfeitamente claro que Tilted Arc foi financiado e projetado para um lugar particular: a Federal Plaza. É um trabalho para um lugar específico e como tal não deve ser relocado. Remover o trabalho é destruir o trabalho.”4 ele disse em 1990.
Desvelando os invisíveis do espaço urbano
Além de mostrar as engrenagens invisíveis que fazem o espaço público mostrar isso ou aquilo e decide quem pode ou não intervir, a arte no espaço urbano também pode revelar agentes que facilmente são ignorados no cotidiano e transformá-los em protagonistas.
É o que fez o artista israelense naturalizado brasileiro Yiftah Peled, em 1992, com a obra “Pense sobre seus pensamentos”. Ela fez parte do “Projeto Escultura Pública”, um projeto pensado por seis artistas e um galerista que distribuiu oito obras de arte pela cidade de Curitiba naquele ano. Yiftah não fez apenas uma escultura, mas uma obra fragmentada que em cada etapa foi descascando camadas da cidade.
Primeiro, ele iniciou uma performance na Praça Garibaldi, no centro histórico de Curitiba, para produzir uma escultura de forma coletiva. Ele dispôs placas de madeira pelo chão ao lado de um balde de terra, por onde as pessoas deveriam pisar antes de andar sobre a madeira. Em seguida, ergueu as placas e montou uma escultura em forma de totem. Num segundo momento, a escultura foi vendida e com o valor foi comprado dezenas de pares de sapato, que foram distribuídos para catadores de papelão que trabalhavam no centro de Curitiba. Em troca, os catadores deveriam utilizar um cartaz com a frase “Pense sobre seus pensamentos” em seus carrinhos. A mesma frase também foi colada em tapumes, muros e outdoors pela cidade, finalizando a terceira parte da obra.
Esse misto de obra processual, ação social e performance de longa duração não apenas se aproveitou de diferentes locais de Curitiba para existir. O projeto transformou em protagonista agentes que facilmente passavam desapercebidos pela cidade enquanto realizavam o importante e mal-remunerado trabalho de recolher o lixo na “cidade ecológica”. Era esse o título de Curitiba naquela época, quando a cidade começava a implementar seu inovador sistema de reciclagem e ganhar prêmios internacionais pelas “iniciativas verdes”, como o Award of Achievement da United Nations Environment, prêmio da ONU considerado o “Oscar do Meio Ambiente”. Os catadores, porém, não eram lembrados por seu papel nesse jogo. Sem mencionar isso, Yiftah trouxe-os em evidência para que projetassem, literalmente, um convite à reflexão no espaço urbano.
Os problemas em evidência
Entre os vários e visíveis problemas das grandes cidades, com destaque para as brasileiras, os problemas habitacionais estão entre os principais. Numa época de arquiteturas hostis, em que instrumentos são pensados para tornar inabitável até mesmo as calçadas de pedra, colocar esses problemas em evidência como parte de um projeto artístico é uma ação que faz pensar o que a arte de modo geral, com suas nubladas relações mercadológicas, tem para contribuir nesse debate.
Quando Guto Ferraz foi convidado para o programa Parede Gentil, da galeria Gentil Carioca, no Rio de Janeiro, ele cutucou essa questão. Periodicamente, um artista é convidado pela Gentil para ocupar a parede na área externa galeria. Guto construiu beliches de ferro e madeira, deixando-os abertos para a cidade utilizar. É claro que o projeto cumpriu a função mais utilitária e esperada: virou local de repouso para moradores de rua, como era a intenção. Nem a obra, nem seu criador precisaram produzir discursos diretos abordando a questão que naturavelmente estava posta pela ação. Pelo simples entrelaçamento entre galeria, espaço público e moradores de rua, já estava iniciada, mesmo que indiretamente, a discussão que fazia pensar a relação entre arte, moradia e mercado.
Arte urbana como prática crítica
A pesquisadora Vera Pallamin, professora aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP), é uma das maiores do Brasil na área de arte pública. Para ela, a ideia de uma arte que consegue se conectar e revelar essas diversas dimensões de quem produz, constrói e interfere no espaço público é algo intrínseco das possibilidades da arte contemporânea. Contudo, ela também pensa que não é só por existir no espaço urbano que qualquer produção artística tem esse potencial. No mundo do capitalismo global, diz ela, é comum que existam produções que simplesmente se conformam aos interesses dominantes e não produzem nenhum tipo de reflexão. Em oposição à essa arte condicionada e condicionante, ela interpreta a “arte urbana como prática crítica”. Um exemplo importante do pensamento da pesquisadora está na citação que segue aqui:
“Destacamos a arte urbana como prática crítica exatamente nesse momento em que o horizonte não posssui mais a carga utópica que já teve um dia. Isso não significa propor o alinhamento com uma atitude melancólica ou nostálgica que buscaria, no presente, remissões a um momento áureo de eficácia e que teria, como efeito diante de tal exaustão de conteúdos, a produção de resistências inócuas, esvaziando-lhes de antemão qualquer possível estofo (Hansen, 1999). Tampouco significa uma aproximação com uma atitude cínica ou decepcionada. Pelo contra´rio, potencializada pela ideia de tornar a cidade disponível para todos os grupos, essa prática crítica inclui dentre seus propósitos estéticos o desafio a certos códigos de representação dominantes, a introdução de novas falas e a redefinição de valores como abertura de outras possibilidades de apropriação e usufruto dos espaços urbanos físicos e simbólicos.”5
Exemplificando a teoria, ela traz a peça de teatro de rua “A canção dos condenados”, de autoria de Ivanildo Antonio, encenada na Praça da Sé em 1996. Na obra, o autor e o artista Pedro Baggio permaneceram por dez dias ininterruptos performando em um cenário com formato de jaula, sem poder sair, interagindo com o público apenas para tratar de temas como racismo, violência, morte e abandono. O lado crítico de sua prática é evidente.
Lançar este texto perto da data mais amada do comércio varejista é uma experiência interessante, para dizer o mínimo. Em Curitiba (de onde escrevo), gigantes marcas lançam suas logos em todas as atrações luminosas que a cidade oferece, transformando a data numa espécie de saldão de vendas num shopping à céu aberto. Não vem ao caso, mas faz pensar como é possível uma construção sensível, plural e crítica do espaço urbano, que não se feche às possibilidades poéticas que permeiam toda a vida pública, seus problemas e prazeres. Frente à uma vida cada vez mais virtual e domesticada por dispositivos e intenções alheias às nossas vontades e que já se transformaram em normalidade, produzir uma arte urbana crítica parece ser uma ação capaz de nos livrar um pouco da anestesia em relação ao coletivo. A cidade ainda é um campo de batalha para a força reflexiva que a arte sempre teve.
1 O’KELLY. Mick. Negociação urbana, arte e a produção do espaço público. Risco, São
Paulo, v. 5, p. 113-127, 2007.
2 Fonte: McGILL, Douglas C. St Louis Bid to remove Serra work. The New York Times; Cultural Desk Late City Final Edition, Section C, Page 13, Column 4, 775 words. Nova York, 1985. Disponível em: http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=1392
3 Fonte: Seção de arte, The New York Times.Open Space Replaces ‘Arc’. Nova York, 1989. Disponível em: http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=1392
4 Fonte: WEYERGRAF-SERRA, Clara; BUSKIRK,Martha; SERRA, Richard. The destruction of Tilted Arc: documents. October Books. Cambridge, Massachusetts. 1990. p. 3-4. Disponível em: http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=1392
5 PALLAMIN, Vera. Arte urbana como prática crítica. In: PALLAMIN, Vera (org.). Cidade e Cultura: esfera pública e transformação urbana. São Paulo: Estaço Liberdade, 2002, p. 103-110.
Renan Archer é graduado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Paraná e mestrando em História pela mesma instituição. Atua enquanto redator, curador e pesquisador, com principal interesse nos debates em história e crítica da arte contemporânea em espaços públicos. Já escreveu para o Curitiba Cult, A Escotilha e hoje colabora também com o jornal Plural.