VIDA NEGRA: A ESCOLHIDA
“A Escolhida” (2020), filme de Gerard Bush e Christopher Renz, é um longa-metragem que retrata a experiência de uma escritora famosa que dialoga com duas linhas temporais distintas, uma na época da escravização e outra na contemporaneidade.
Assim, no primeiro bloco, o da Escravização, o espectador observa diretamente a vinculação do sofrimento das populações negras diante de uma fazenda escravista, onde qualquer ação pode levar a castigos físicos ou à morte. Tudo, nesse cenário, é o retrato de um verdadeiro horror coletivo e subjetivo. Há, juntamente com o desespero intrínseco e explícito, o constante contato com a necessidade e elaboração de um projeto de fuga.
Já no segundo bloco, o filme muda completamente de perspectiva e passa a desenvolver a mesma personagem que viveu o bloco anterior, só que diante da contemporaneidade. Assim, a protagonista se apresenta como uma inflluencer global, que se depara com uma centena de relações inter-raciais e, consequentemente, situações de racismo transparente e velado.
É nesse ponto que os dois blocos se unem, quando um grande teatro alimentado pela raiva e pelo medo, faz com que uma mulher e seu grupo de colaboradores sequestrem a protagonista e a levem até à fazenda que aparece no bloco inicial do filme. Ou seja, o tempo todo os dois cenários do filme estavam interligados!
Portanto, o que ocorre é que a protagonista passa a ser submetida a uma situação forjada semelhante à da escravização, como uma centena de outras pessoas negras. Ao fim da trama, ela e os outros conseguem empreender uma fuga.
Nesse sentido, a finíssima crítica de “A Escolhida” se alimenta de uma perspectiva a- histórica que denuncia, sem remediação, uma espécie de passado que nunca passa: são os
mesmos corpos negros, antes escravizados e punidos, que seguem sendo alvos de perseguição, trabalhos forçados, ódios, violências sistemáticas e subjetivas de todos os tipos, sustentando os pilares de uma sociedade contemporaneamente escravista.
Para Beatriz Nascimento (2021), a relação com as populações negras, no Brasil, se dá no sentido da tolerância. A vida negra, para ela, tem um espaço e uma dimensão simbólica muito particular que é aceita apenas em determinada medida nos ciclos sociais da branquitude, arquitetando os jugos do preconceito racial. Assim, as manifestações do racismo na consciência nacional continua permeando toda uma cultura da excludência que esses sujeitos, negros, continuam sendo tratados como se ainda vivessem sob os paradigmas do escravismo.
Há, aliado a isso, para a autora, uma mistificação em torno da cultura negra que a subordina e relega o lugar do folclórico, do imagético. Nesse sentido, tudo que permeia o sentido da razão, da intelectualidade, do concreto, passa a ser designado única e exclusivamente à cultura europeia.
É nesse sentido que se pode perceber um paralelismo entre a abordagem de Nascimento (2021) e a obra de Bush e Renz (2020), em ambas as cenas, no real e no fictício, a vida negra é aquela escolhida para ser subalternizada, para sofrer o processo cruel de diáspora que arrancara das populações negras sua humanidade e relegará a elas o determinismo social da animosidade. Nesse sentido, na perspectiva europeia, o que não é humanizado pode ser escravizado.
Portanto, o racismo se apresenta enquanto uma estrutura transhistórica, que sustenta as bases das sociedades mundiais, do passado à contemporaneidade.
O COLONIZADOR E O ESCRAVIZADO: DOIS ESTRANHOS
O curta-metragem “Dois Estranhos” (2020), dirigido por Travon Free e Martin Desmond, se baseia em um estilo de filme vai-e-volta, em que a personagem principal revive seu dia várias e várias vezes. Contudo, o trabalho desses diretores ultrapassa os clichês desses filmes, uma vez que eles utilizam de uma realidade crua e de recorrência cotidiana para retratar apenas o real: ainda que a personagem principal seja a mesma, revivendo um mesmo dia diversas vezes; na nossa sociedade, o sujeito que a representa, o negro-único, reflete essas dores dia após dia, como se fosse a primeira (ou última) vez.
No filme, que remete ao assassinato de George Floyd, o personagem principal é um homem negro que é submetido a uma serie de violências policiais gratuitas, descabidas, desproporcionais e absurdas. Essas situações, comuns nos EUA e no Brasil, são dirigidas para as comunidades negras que vivem um processo notório de segregação racial.
Além disso, o filme também toca na questão da romantização das atitudes de pessoas brancas, quando faz com que o policial branco compreenda a situação do protagonista negro, lhe dê uma carona para casa (desde que no banco de trás da viatura, atrás das grades), mas quando eles saem do carro, o policial branco explica que precisa atirar nele. E assim o faz.
O filme se encerra de maneira espetacular, a última morte do protagonista carrega consigo o peso de mais de quatro séculos de diáspora: o sangue que é derramado, seu sangue de revolta, tem o formato de África.
É um filme que dura cerca de 30 minutos; são trinta minutos de um homem negro sendo morto por um policial branco. Se fosse feito no Brasil, duraria 23 minutos. Se fosse mesmo só um retrato da realidade, ainda não teria fim.
Para Santos (2020), todas as relações raciais que se forjam nas sociedades contemporâneas são herança do colonialismo-escravocrata. Assim, a violência aparece como o alicerce dessa tradição colonial.
Ser negro é ser violentado de forma constante, contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e os ideais de eu do sujeito branco e a de recusar, negar e anular a presença do corpo negro. (SANTOS, 2020, p.11 apud SOUZA, 1983, p.2)
POLÍTICA DE BRANQUEAMENTO: CORRA!
O longa-metragem produzido por Jordan Peele, em 2017, “Corra!”, retrata uma sucessão de fatos na vida de um fotógrafo bem sucedido, que viaja com sua namorada para a fazenda da família dela a fim de conhecer seus pais.
Contudo, o enredo que parece simples, se apresenta perante uma complexidade socio- racial lançada logo de início: o rapaz é negro e sua namorada e família, branca. Assim, o filme escancara situações de racismo velado das quais as populações negras são vítimas e os sujeitos brancos praticantes e/ou telespectadores mudos.
Logo no início da obra, o protagonista alerta que não se sentiria confortável de aparecer na casa da família da namorada sem que eles tivessem conhecimento da cor de sua pele. Ela, contudo, tenta convencê-lo de que não há nenhum problema nisso, argumentando que o pai dela votaria no primeiro presidente negro do país, Obama, pela terceira vez, se fosse preciso.
Logo nessa cena é possível perceber uma situação de racismo velado através da explicação de que a ausência do preconceito racial se justifica uma vez que o sujeito que a defende já manteve, mantém ou manteria relações com aquela raça. Assim, o que se coloca é
que não há, de antemão, uma relação de humanidade horizontalizada na perspectiva do indivíduo branco, mas o sujeito negro é visto como aquilo que não é humano, mas que poderia, eventualmente, ser aceito nos ciclos sociais de uma comunidade pura e civilizada.
Os pais da namorada do rapaz se referem ao relacionamento deles como “coisa” e os interpelam questionando há quanto tempo a sustentavam, mais uma vez explorando a visão de anormalidade perante relações afetivas, não meramente sexuais, estabelecidas com pessoas negras.
O ponto chave da trama reside no fato de que as personagens negras são mantidas em situação semelhante à da escravização naquela família, que mantém essa tradição de hegemonia branca secular após um processo de hipnose que converte os sujeitos negros em subservientes irreverentes. Aliado a isso, a configuração arquitetônica da fazenda dessa família remete a uma estrutura escravista americana, fazendo mais uma vez alusão ao processo de diáspora, escravização e extermínio dos povos negros.
Logo é possível perceber que aquela residência é um local conhecido pelo sumiço de pessoas negras, casos que nunca foram solucionados pela polícia, nitidamente por falta de interesse da mesma. Mais uma vez, é possível perceber a crítica social voltada às ações da vida civil, onde a cor da pele determina a importância de uma vida.
Assim, o protagonista descobre que também foi propositalmente levado, por sua namorada, à fazenda dos pais para ser submetido à uma espécie de leilão do seu corpo – mais uma vez, remetendo à Escravização – que o engabelaria na realização do procedimento de hipnose. Durante todo o procedimento, há a transmissão das sensações de angústia, terror e desespero por parte da personagem.
Contudo, o fotógrafo consegue empreender uma fuga daquela situação de horror, acreditando que enfim encontrará a liberdade. No ápice da fuga, o que se vê é a aproximação de um carro da polícia local, o que causa ainda mais medo no rapaz, pois este poderia ser facilmente retirado arbitrariamente de seu local de vítima por quem saísse da viatura.
Veja, nesse instante, Jordan Peele viveu o que acredito ter sido um dos maiores dilemas da sua carreira: o final surpreendente de “Corra!” seria um soco no estômago ou um suspiro de alívio? Poderia sair da viatura de polícia, como ocorre em nossa sociedade, um policial qualquer que veria um homem negro, símbolo da marginalidade, diante de uma situação de latrocínio e o apreenderia – na melhor das hipóteses!? Ou de lá sairia, por sorte de um destino nunca justo, um rosto amigo que poderia lhe salvar de tudo aquilo?!
Peele optou pelo segundo final. Mas, e a nossa sociedade, também optaria!?
Conceição (2020), em sua obra “Branquitude: Dilema Racial Brasileiro”, descreve o processo de dominação racial no pensamento social brasileiro e revela que a branquitude é uma espécie de ideologia que pretende transformar o branco em tipo-ideal, mesmo diante de uma nação formada majoritariamente por negros. É nesse processo que emerge a política do branqueamento.
Assim, a política do branqueamento se ergue em meio à exclusão, a humilhação e a morte. Conceição (2020) evidencia também de que modo as relações de gênero e classe estão relacionadas com a questão da raça. Para o autor, a branquitude é uma ferida narcísica que ergue as hierarquias sociais.
SOLIPISMO BRANCO: O ÓDIO QUE VOCÊ SEMEIA
O enredo fílmico de “O ódio que você semeia” (2018) é inspirado no livro escrito por Angie Thomas e baseado na história real de Oscar Grant, um homem negro de 22 anos, morto em 2009 em uma (viol)ação policial. O filme se propõe a abordar o preconceito racial e demonstrar de que maneira o racismo estrutural faz parte das sociedades contemporâneas.
Durante a história, a protagonista, uma adolescente negra, presencia a morte de seu melhor amigo, também negro, durante uma violenta abordagem policial, após sair de uma festa. Ela foi a única pessoa que observou o ocorrido e, por isso, passou a testemunhar em diversos espaços, disciplinares e midiáticos, exigindo justiça pelo assassinato do amigo.
A jovem vivia em um bairro perigoso, nos EUA, mas as condições econômicas de seus pais a possibilitavam estudar em um colégio local de classe média-alta. Dessa forma, motivada por pressões externas, a menina se sentia compelida a se comportar do jeito mais parecido possível com seus colegas (brancos), para não correr o risco de ser discriminada.
Desse modo, o que é possível observar na obra é que esta demonstra, além de seu caráter profundamente atualizado, diversas problemáticas que envolvem as experiências práticas e subjetivas cotidianas das populações negras, profundamente atravessadas por violências e violações racistas, que impactam negativamente toda a estrutura das suas vidas comuns.
Além disso, o filme apresenta também um viés denunciatório ao postular que muitas vezes tais violências acabam não ganhando ou perdendo a visibilidade de que precisam para serem combatidas. Por fim, mas não menos importante, a película instiga o leitor a refletir sobre quais são suas atitudes individuais que podem estar servindo para endossar o racismo estrutural e aponta para a urgência das denúncias, por parte de todos e todas, diante de qualquer situação discriminatória.
Para Fanon (2008), o processo de colonização determinou que o indivíduo negro possui duas características comportamentais distintas: o trato com o homem negro e o trato com o homem branco. Com o segundo, o tratamento é pautado em uma linguagem de autodiminuição, assumindo uma posição de inferiorização que advém do processo do escravismo.
Fanon (2008) irá defender que esse processo de inferiorização irá ocorrer por parte dos brancos e ser interiorizado por parte dos negros independentemente da quantidade de sujeitos negros que ocupem o espaço, posto que o branco questiona a humanidade do outro apenas porque ele existe. Assim, tendo sua humanidade furtada, o negro tenta se igualar ao branco para ter sua humanidade reconhecida. É daí que advém o solipismo branco: as populações brancas só veem humanidade entre os seus iguais.
Além disso, nessa sociedade profundamente racializada, para o negro não há espaço para a mediocridade. Assim, é possível perceber que no âmbito da construção de uma subjetividade profundamente marcada pelos signos do racismo, nascem atravessamentos que configuram um sujeito que não reconhece a si mesmo como parte de um todo.
ÚLTIMAS PALAVRAS (OU UMA EPÍGRAFE)
[…]
Existe um corpo que é imã de bala Ou é só o ódio que quer lhes matar?
Submetem essas carnes como produtos Motivados pelo denuncismo
Nos deram 23 minutos
Para enfrentar a estrutura do racismo 12 mortos no Cabula,
80 tiros deflagrados, Sua última piada chula
Faz de você um dos culpados.
REFERÊNCIAS
A ESCOLHIDA. Gerard Bush; Christopher Renz. EUA: Paris Filmes, 2020.
CONCEIÇÃO, William Luís da Silva. Branquitude: Dilema Racial Brasileiro. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2020.
CORRA!. Jordan Peele. EUA: Universal Pictures, 2017.
DOIS Estranhos. Travon Free; Martin Desmond. EUA: Netflix, 2020.
FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. 1ª edição. Brasil: Ubu Editora, 2008.
NASCIMENTO, Maria Beatriz. Uma História Feita Por Mãos Negras. 1ª edição. Brasil: Companhia das Letras, 2021.
O ÓDIO Que Você Semeia. George Tillman. EUA: 20th Century Studios, 2018.
SANTOS, Kwame Yonatan Poli dos. Relações raciais: uma questão para
psicanálise?. PORTO ARTE: Revista de Artes Visuais, Porto Alegre, RS, v. 25, n. 44, dez. 2020. ISSN 2179-8001. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/PortoArte/article/view/109897/59824>. Acesso em: 02 dez. 2021.
Victória Henry é graduanda no Interdisciplinar em Humanidades pela UFBA, digital marketer, bolsista UFBA no projeto “Da Monocultura à Pluricultura do Conhecimento: Ciência e Saberes Tradicionais de Cura e Cuidado na Formação em Sáude”, pesquisadora em Ciências Sociais e poetisa.
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