Cozinhar é uma fuga da natureza para a imaginação. Uma refeição alimenta tanto o corpo quanto alma. É uma volta para si mesmo.
Das minhas lembranças mais antigas, das quais ainda tenho guardadas, até às mais recentes, muitas delas estão associadas à comida. Dos almoços de sábado na casa da minha avó, onde ela preparava o famoso nhoque de batata com molho de tomate, que era a sua especialidade. Como também das noites frias de julho quando minha mãe fazia uma sopa de feijão branco que aquecia o corpo e a alma. Lembro também quando a família se reunia e as tias faziam fornadas de chipas; em volta da mesa os risos e conversas, as histórias do passado se desdobravam e eu as ouvia fascinada com a boca cheia de massa roubada da bacia.
Do bolinho de chuva, macarrão com berinjela, pão ainda quente banhado no azeite de oliva com uma pitada de sal marinho, bolo de aniversário com recheio de abacaxi, até a vitamina de pepino e beterraba que minha mãe me obrigava a tomar de manhã. Eu poderia passar um bom tempo listando todos os pratos e quitutes, todos os rostos e mãos das pessoas que os prepararam, e de todas as sensações que cada prato me proporcionou.
Sei que não sou a única a ter lembranças com a comida. Você também, caro leitor, deve ter as suas. Afinal, todos nós como seres vivos nos alimentamos, primordialmente pelo fator nutritivo e mantenedor dos alimentos. No entanto, além da sobrevivência, nós desenvolvemos a capacidade de criar hábitos culinários que não sucedem apenas do mero instinto de sobrevivência. Vão além, transformando o cozinhar em expressão da nossa história, cultura, geografia, crenças e organização social. Como também o cozinhar é a manifestação dos nossos sentimentos e da nossa imaginação.
Gosto do termo “comida de alma.” Nossas primeiras experiências, talvez as mais queridas e reconfortantes foram vividas em uma cozinha. Como cozinheira eu entendo o valor dos restaurantes, no entanto acredito muito na cozinha doméstica. Ela que é democrática, que possibilita a todos a graça e poder de transformar e criar. Ela que também pode conter a nossa alma.
A cozinha como o útero e coração da casa, é forno, é criação, fonte e manutenção. Aquele que se aventura entre as panelas torna-se íntimo da matéria e dos seus mistérios. Dos seus segredos é possível gerar pratos com misturas e separações, formas, texturas, cores e aromas. Transformando a realidade a partir da imaginação. Transformando isso naquilo.
Cozinhar é propriamente criação, pois transforma a crueza e rudez dos alimentos, revestindo-os de fantasia, combinações, aromas, molhos, acompanhamentos e cores. Há uma narrativa e um encantamento enquanto se cozinha.
O cozinheiro, enquanto corta os legumes, ao cozinhar as massas e assar as carnes, está criando como um artesão, um pintor e um compositor. No entanto, o seu material bruto são os alimentos e as possibilidades que daí derivam.
O momento de cozinhar é afetivo e evoca um centro criativo. Estar na cozinha é uma metáfora da alma e corpo, ambos em busca de alimentação. Comer, além de ser um ato fisiológico e cultural, é também um ato emocional e simbólico.
Hoje em dia com a aceleração do ato de comer tanto em casa quanto no trabalho e na rua – o fast food, a comida congelada e pré-pronta – o rito do cozinhar e da refeição acabam perdendo o seu valor. A mesa como metáfora da vida acaba refletindo como somos e estamos escolhendo viver. No caos dos dias esquecemos que cozinhar é como a vida, e viceversa. É preciso parar e retornar para o centro, para o coração para o útero que gera, para aqueles momentos em que a comida é preparada com cuidado e dedicação.
É triste ver como alimentos insípidos e sem atrativos criativos e afetivos, acabam adentrando nossos corpos. Estes escolhidos apenas pela utilidade prática. Daí o encantamento se parte e as possibilidades ficam restritas ao conformismo. Come-se, mas falta saciar a alma.
Precisamos nos alimentarmos em diversos planos da nossa existência. Alimentados de paixões, alimentados de sonhos, buscamos saciar-nos continuamente. Alimentamo-nos de nossos laços com coisas, pessoas, tradições e culturas. Como também da arte, literatura, ideias e histórias. A busca pela nutrição, da nossa psique e corpo, é contínua. Estamos sempre com fome de algo.
Aí que chega a questão: como nos saciamos?
Já adianto que não tenho a pretensão de responder a essa pergunta. Até porque ela é ampla em si mesma, pois carrega a fome de cada um nós. E bem, cada um de nós já é por si só um universo o que torna as respostas inumeráveis.
No entanto, talvez, eu tenha uma boa pista. Algo que aprendi de experiência pessoal, com as minhas memórias afetivas na cozinha, das quais busquei entender a minha fome de corpo e alma vestindo o avental e botando a barriga no fogão. Algo que também aprendi conversando com pessoas que cozinham.
Descobri na cozinha física, nas panelas, nos ingredientes e métodos uma parte escondida e pouco compreendida por mim mesma, da minha subjetividade. Virou então metáfora.
Daí que descobri que voltar para a cozinha é voltar para si mesmo. É compreender o tempo das coisas, os processos e as possibilidades. A importância do nosso corpo, das nossas mãos como ferramentas e intermediárias. Transformando pensamentos em ações. Ações em comida. Consciência de estar presente naquele momento. Pois é preciso focar e deixar os problemas do trabalho, da escola, e outros tipos de pensamentos do lado de fora da cozinha. Não se cozinha bem com a cabeça em outro lugar, é preciso estar inteiro.
Cozinhar também é um exercício de paciência. Compreender que cada ingrediente possui a sua individualidade. A batata cozinha em um tempo diferente da abóbora, um bolo leva um fermento diferente do pão. E neste sentido as pessoas exigem a mesma compreensão. Cozinhar pode nos ensinar a respeitar a amar as pessoas, reconhecendo as suas diferenças, belezas e restrições. É também se auto amar e reconhecer os seus processos individuais.
Cozinhar é humildade e doação. Quando cozinhamos para outras pessoas percebemos que essa é uma responsabilidade e um exercício de se colocar no papel de criado. No entanto, olha a graça! O criado esconde, por outro lado, o criador. E quem come, se sacia de fato, da sua criação.
Ir para a cozinha é uma ação que passa longe de ser banal. Se ela for encarada como um processo emocional. E o resultado é no mínimo um processo de autoconhecimento e ressignificação de sentimentos. É uma percepção de como você encara a sua mesa e por consequência a sua vida.
Meu apelo e desejo é que voltemos a criar histórias e memórias na cozinha. Que possamos perpetuar aquilo que aprendemos com aqueles que nos antecederam. E assim, criemos novas experiências e lembranças para aqueles que estão vindo. Dando corda no tempo, cozinhando memórias.
Que possamos usar a nossa imaginação para criar. Que compartilhemos o pão, os momentos e sentimentos com outras pessoas. Que deixemos de optar pelo o que é apenas conveniente, mas tão pobre em sabor e sentimento. Que a nossa cozinha seja um espaço físico que alimente a nossa casa, nossos corpos, nossas mentes, nossos corações. E por fim, nossas almas. Estas que andam tão famintas de comida de verdade, e digo isso em todos os sentidos.
Hadassah Sorvillo é amante das palavras e da natureza. Formada em publicidade e gastronomia, equilibra seus dias na rotina como freelancer de conteúdos digital e cozinheira. Também compartilha receitas e descobertas culinárias no temperodahady.com
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