Resumo
Por que o século XXI produz a antinomia entre a capacidade de armazenamento das mídias versus o que efetivamente está sendo gasto para gravar as músicas? Não é regra, mas a maioria das produções de sucesso nas plataformas ficam em torno dos três minutos. O artigo pensa esta situação ao descrever a história dos suportes de gravação pelo viés materialista da comunicação, propondo que as mídias já carregam a maneira de se experienciar a temporalidade. A crescente plataformização dos conteúdos e a curadoria de playlists são os objetos de estudo. Representantes do consumo musical atual e do contexto de crescimento do faturamento da indústria fonográfica. Explora-se na conclusão do artigo, o contraste entre dois formatos: álbum e playlist. Abordando o esfacelando deste formato anterior em frações algorítmicas.
Palavras-chave
História da Mídia Sonora; Streaming; Materialidades da Comunicação; Playlist; Álbum musical.
Introdução
O ano é 2021.
Uma rápida pesquisa na internet na parada “The Hot 100” da Billboard mostra nas primeiras dez posições canções entre dois e três minutos de duração. Quando comparada a playlist “Top 50 Global” do Spotify algumas canções se repetem, principalmente nas primeiras posições. O padrão é mantido no Deezer na lista “Top Worldwide”. Em 2020, o relatório da The Recording Industry Association of America (RIAA) apontou mais de setenta e cinco milhões de assinaturas pagas de serviços de streaming de música dentro dos EUA, o que representou uma arrecadação de mais de dez bilhões de dólares, ou seja, 83% dos ganhos da indústria musical no país (RIAA, 2020). Porém o que mais chamou a atenção foi a venda de LPs superando a de CDs. Fato que não ocorria desde 1986, o que significou respectivamente receitas de 619 milhões e 483 milhões de dólares. Com estes números percebe-se que a indústria musical está reencontrando seu crescimento mercadológico em novos produtos, após da decadência nas vendas de mídias físicas iniciada nos anos 2000.
Diante deste contexto, duas premissas podem ser extraídas: a duração das músicas e a formulação de um novo mercado. É objetivo deste artigo relacionar as duas, propondo a seguinte reflexão: por que as músicas que encabeçam as principais playlists das plataformas de streaming são tão curtas, visto que a capacidade de duração das mídias não é mais uma limitação? A intenção é abordar o assunto a partir das materialidades da comunicação, tomando o percurso histórico dos suportes de gravação como uma breve antologia crítica. Ao que tudo indica à medida que as tecnologias foram sendo desenvolvidas, as capacidades físicas das mídias foram sofrendo acréscimos de duração. O artigo é dividido em duas partes, o inicio aborda a formação da indústria fonográfica, focando na invenção dos dispositivos tecnológicos e suas importâncias históricas. Na parte final serão realizadas reflexões explorando a temática a partir do viés da plataformização e dos algoritmos (BONINI & GALDINI, 2019; PREY, 2020; PASSOTH, 2019), da noção de tempos midiáticos (BARBOSA, 2019) e o papel das playlists e dos álbuns como formas de consumo de música (BURKART, 2008; HAGEN, 2015).
Fonógrafo: um intruso na aristocracia
Nunca é imediata a comutação de um modo de vida a outro. De acordo com sociólogo Everett Rogers e a Teoria das Inovações, há uma grande lacuna informativa para transpor o abismo dos formadores de opinião e a maioria das pessoas (ROGERS, 1962). Exemplos, são as invenções do fonógrafo de Thomas Edison, em 1877, e do grafofone de Gram Bell, em 1889. Dispositivos sem sucesso inicial esperado, graças a uma série de equívocos em suas aplicabilidades e estratégias comerciais. Culminando numa novidade que virou fracasso mercadológico, como explica McLuhan:
A experiência prática lhe tinha ensinado que todos os problemas continham embrionariamente todas as respostas, desde que se descobrisse o meio de explicitá-los. No seu caso, sua determinação de dar ao fonógrafo, como ao telefone, uma praticabilidade direta que interessasse ao mundo dos negócios levou a negligenciar as possibilidades do invento como meio de entretenimento. A incapacidade de antever o fonógrafo como meio de entretenimento era realmente uma incapacidade de apreender o significado da revolução elétrica em geral. (MCLUHAN, 2007, p.311)
A indústria fonográfica surge então como uma correção estratégica no uso destas invenções, justificando os capitais investidos nos projetos. Inicialmente, eram máquinas focadas no registro e não na reprodução de sons. Complementares as atividades do telefone e do telégrafo, que haviam sido adotados pelo Estado dos EUA. Os produtos fracassados ganharam espaço nas mudanças culturais e socioeconômicas dos países industrializados em ascensão. A fala de McLuhan encontra ressonância não só em Thomas Edson e seu pragmatismo de inventor, mas em toda uma aristocracia saudosista. Se anteriormente, a música era executada mediante habilidades conquistadas com anos de estudo, uma máquina que tocava música era considerada cultura inferior. Representava a obtenção de lazer e prazer imediato sem esforços. Neste sentido, a máquina indicava uma profunda mudança, pois alinhava seus interesses com a emergente classe média das cidades em desenvolvimento. Portanto, a indústria fonográfica não é uma ocorrência natural dos fatos, ou seja, possibilidades técnicas que tem como resultado a venda de música gravada. Na ocasião, inclusive a situação era oposta, já que os empresários abominavam tal ideia, pois valorizavam a aplicação séria e prática de seus capitais ao investimento em entretenimento.
Considerando que o salão era um cômodo das casas de classe média vitoriana para apresentação formal e a manutenção da identidade familiar, onde álbuns de família e obras de arte eram combinados com vários estilos de móveis e arte para transmitir certa identidade aos visitantes e aos próprios membros da família, a classe média consumista emergente começou na década de 1890 a considerar essas práticas antiquadas e estéreis. […] A cultura de consumo da classe média que forneceria a base cultural, econômica e afetiva para a construção de coleções de gravações e extensa audição de música pré-gravada estava apenas emergindo quando essas máquinas se tornaram disponíveis. Como resultado, tanto os inventores quanto os profissionais de marketing limitaram suas apostas, promovendo os fonógrafos como máquinas com as quais uma família poderia produzir sua própria cultura e mercadorias produzidas em massa que colocariam seus usuários em contato com um público maior (STERNE, 2003, p.204, tradução nossa).3
A inscrição material do som
Até antes da existência dos dispositivos de registro do som, a informação sonora era perdida. Inclusive isto faz parte do argumento presente no saudosismo aristocrático, uma espécie de aura musical da performance (BENJAMIN, 1985). Sempre há esse debate cultural e uma resistência a adesão, como ficou claro com a Teoria das Inovações. Para desenvolver a antologia crítica mencionada, será exposta à evolução das tecnologias que caracterizaram a indústria, para à frente elaborar a reflexão da incidência da playlist como materialidade organizacional do presente midiático. Se o som era efêmero e a tecnologia permitiu sua fixação, quer-se pensar o binômio informação-som, evocando as materialidades da comunicação. “Em primeira instância, falar em ‘materialidades da comunicação’ significa ter em mente que todo ato de comunicação exige a presença de um suporte material para efetivar-se” (FELINTO, 2001, p.2). São provocações como as de McLuhan aos nomes fonógrafo, grafofone ou gramofone na relação com a partícula (Grama=letra), sugerindo uma escrita auditiva. Inicialmente, a informação sonora era inscrita no papel pela sensibilização da agulha, através da vibração do diafragma do aparelho, que captava as ondas da voz (MCLUHAN, 2007). A ideia de informação materializada está presente também na própria estética da música, como na Música Concreta de Pierre Schaeffer ([1966], 2003). Mas, possivelmente, o que melhor representa e da forma a materialidade é a própria Teoria da Informação (SHANNON E WEAVER, 1948), codificando a informação simbólica em linguagem de máquina quantificável e em formato calculável. Esta é uma flexa temporal que ficará clara no percurso, desde o primeiro cilindro de cera até as milhões de playlists. Som = matéria = informação.
Primeiramente, a duração de mídia a ser discutida, aparece com o gramofone de Emil Berliner e o disco de 78 rotações por minuto (rpm). O invento que se tornou padrão mundial popularizou a ideia de três minutos de duração, pois era a capacidade de cada lado do disco.
Este aparelho funcionava com discos de goma-laca, ao invés de cilindros de cera, os quais poderiam ter seu conteúdo reproduzido através de uma técnica de estampagem (stamping), que consistia em gravar com água-forte o registro sonoro num disco de metal, criando uma matriz que serviria para estampar outros discos em série. A partir de 1895, o gramofone seria comercializado e, em 1901, Berliner e seu técnico Eldridge Johnson fundariam a empresa fonográfica Victor Talking Machine – de onde deriva o apelido “victrola” para o gramofone – e, em virtude de sua capacidade de replicação do conteúdo, os discos suplantaram o uso dos cilindros como padrão da indústria fonográfica (DEMARCHI, 2011, p.96).
Em muitos aspectos o disco 78 rpm suplantou pouco a pouco os formatos do fonógrafo e do grafofone, pois era mais fácil de ser reproduzido em série. Característica que inicialmente não estava presente nos suportes concorrentes, já que haviam sido pensados apenas como dispositivos de registro para integrarem os sistemas de comunicação em rede do telefone e do telégrafo. Nesta rotina, cada gravação era pensada como unidade, um documento sonoro. Até surgiram formas de copiar tais matrizes sonoras, mas não consistiam de processos tão eficientes quanto dos discos. Além disso, possuíam durabilidade era inferior. É neste contexto de reprodução em série e quebra de aura, que surge a indústria de público massivo. De acordo com a lógica da demanda e procura, se há interesse na mercadoria o importante é oferecê-la e criar modos de se maximizar os lucros. Para completar o rádio surgia à época como grande veículo de comunicação massiva. Surgiram então, as disputas entre gravadoras e as rádios, com acusações do uso vicário dos registros sonoros, já que as rádios adquiriam uma cópia para reproduzir várias vezes, desencadeando crises de direitos autorais. Tais aspectos são importantes na compreensão do desenrolar cultural do consumo musical, combinados a crescente urbanização e o ritmo acelerado das cidades
A partir da metade da década de 1920, as empresas fonográficas começaram a enfrentar a competição de novos entrantes no mercado de música: as corporações de radiodifusão e de cinema. Estas empresas possuíam fundos para desenvolver inovações que estavam alterando a configuração do mercado de gravações sonoras. Apenas para citar três exemplos decisivos: as pesquisas sobre o microfone elétrico, as caixas de som e as gravações elétricas estavam mais adiantadas nos laboratórios dessas corporações do que nos das gravadoras (DE MARCHI, 2011, p.101 e 102).
Mesmo com a radiodifusão sendo regulamentada pelo estado, isto não foi um impeditivo para que duas grandes empresas dominassem o mercado: a National Broadcasting Company (NBC), pertencente à RCA, e a Columbia Broadcasting System (CBS). Devido ao poder econômico que possuíam, essas companhias formaram verdadeiros conglomerados de entretenimento, comprando os catálogos de artistas das gravadoras e editoras. Portanto, as rádios detinham os meios de produção e divulgação. O que definiu o lugar tanto do rádio quanto dos discos no consumo musical. Vem deste poder a segmentação em estilos e a adoção do radio format 4 como padrão para organização da programação e identidade, que já na década de 1950, se fixa na imagem dos deejays como gatekeepers e suas playlists radiofônicas.
Em 1948, a Columbia apresentou ao mundo o Long Play (LP) com uma estratégia de vendas já inclusa. O novo suporte podia chegar até 30 minutos de cada lado, dependendo do espaçamento do sulco do disco. Devida a maior capacidade de armazenado, os discos de 12 polegadas (33 rpm) foram definidos como formato de gravação para concertos de música erudita ou música séria. Coleções de luxo que incluíam livretos explicativos sobre as obras, conferindo caráter de permanência e durabilidade aos produtos. As versões de 10 polegadas e os compactos de 45 rpm foram destinados ao consumo de música popular e uso nas rádios. As gravadoras consideravam que tais estilos não necessitavam do espaço extra para registro por serem bens de uso imediato. Discos de 78 rpm foram caindo em desuso até a década de 1970, à medida que os artistas adotavam os esses novos suportes como padrão. O formato de 12 polegadas tornou-se a opção predominante e foi comercialmente viável na indústria até metade dos anos 1990, passando a concorrer com o CD. Interessante é pensar na permanência da materialidade do formato do LP, que sobrevive até hoje pela afetividade e a mística de sua qualidade sonora.
O primeiro CD vendido foi no ano 1982, no Japão, mas era desenvolvido, desde 1974. Reza a lenda que sua duração foi definida pelo gosto musical do vice-presidente da Sony à época, cuja sinfonia favorita era a 9ª de Beethoven, de duração aproximada de 80 minutos. Também é da década de 1970, o início das pesquisas de compressão de áudio que culminariam no Mp3. Dieter Seitzer, professor da Universidade Nuremberg, pesquisava uma maneira de codificar as mensagens de telefone para transmissão em alta qualidade, mas a invenção da fibra ótica fez com que ele voltasse o projeto para a codificação de música. Assim como Edson, os esforços que eram para a telefonia foram revertidos para o entretenimento.
Plataformas e a temporalidade
Quando Daniel Ek, CEO e cofundador do Spotify, disse em agosto de 2020: “você não pode gravar uma vez a cada três ou quatro anos e pensar que será o suficiente” (CLASSICFM, 2020, tradução nossa)5, tal argumento conclui que os artistas devem produzir mais músicas e com frequência para garantir destaque nas plataformas de streaming. Pensemos então, na questão da quantidade. Não se trata do debate da qualidade vs quantidade, mas de uma visão de quantidade quanto ao tempo gasto para se produzir um trabalho musical. Se é intenção do artigo explorar a questão da duração, é importante discutir a forma como as plataformas operam seus milhões de arquivos musicais.
Plataformas como Spotify, Deezer e YouTube não são primordialmente produtoras de conteúdo. Esta última, em menor escala, realiza algumas produções originais, entretanto, as grandes cifras monetizadas por estas empresas, são provenientes do licenciamento de conteúdo de terceiros. Elas fazem parte de um recente modelo de negócios, que vem se mostrando rentável para reerguer a indústria cultural ao patamar das cifras astronômicas do passado. Em especial a indústria fonográfica, que viu num passado recente sua ruína, diante das facilitações informacionais da tecnologia digital. Isto porque, copiar um CD é mais fácil que um vinil. Mas perceba, nem seria apenas a questão de retornar a um formato para garantir centralidade nas vendas diante da fragilidade comercial, já que a difusão tecnológica permitiu a reprodução caseira de informações. Não se trata mais da venda de informações em formato físico, pois quando pensamos as materialidades envolvidas, percebemos que se existem outras formas de obter o conteúdo, também se condiciona a forma de consumo e o formato do produto.
Após a ruptura engendrada pelas tecnologias P2P (por exemplo, Napster) no início de 2000, que levou à desmaterialização da música como uma mercadoria e marcou o início de uma era de ampla disponibilidade de conteúdo musical, estamos testemunhando agora uma reintermediação da música práticas de consumo controladas por plataformas de streaming de música comercial (BONINI & GANDINI, 2019, p.1, tradução nossa) 6.
O que está em jogo é a ideia de plataformização, que “pode ser definida como a penetração das extensões econômicas, governamentais e a infraestrutura das plataformas digitais para a Web e ecossistemas de aplicativos, afetando fundamentalmente as operações das indústrias culturais” (NIEBONG & POELL, 2018, p.4226)7. São empresas do ramo da informação conhecidas por criar soluções para ressignificar as materialidades já existentes, em novas formas de acesso e consumo. Altera-se assim, uma característica fundamental da indústria: a relação de posse para a de acesso ao bem cultural. Antes, o ouvinte possuía os discos ou CDs para escutar, ou mesmo, durante a era dos compartilhamentos P2P de Mp3, o número de downloads não excedia a do armazenamento do suporte. A noção da obrigatoriedade de posse do arquivo, impunha ao ouvinte sempre uma experiência que em algum ponto seria limitada pela materialidade da mídia. Com as plataformas a situação é diametralmente diferente, pois toda uma antiga coleção juntamente a tantos outros conteúdos que nunca se cogitou ter, passam a estar no mesmo lugar. O conteúdo não é mais o produto o que se vende são escolhas diante da infinidade de opções. A produção de um limite baseado em escolhas pessoais anteriormente tomadas, em suma, a gamificação do gosto em formas de playlists personalizadas.
Artistas musicais e gravadoras estão cada vez mais dependentes das posições mais desejáveis das playlists – listas controladas pelo Spotify. Para plataformas como Spotify ou YouTube, que não detêm os direitos de seu próprio conteúdo, as playlists são um mecanismo fundamental para exercer o que podemos chamar de “poder curatorial”: a capacidade de promover os próprios interesses e afetar os interesses dos outros, através da organização e programação de conteúdo. (PREY, 2020, p.3, tradução nossa)8.
Mas, se empresas como o Spotify ocupam agora a grande fatia da divulgação musical, as considerações de Rothenbuhler com relação as rádios são extensivas as plataformas, que “embora as pessoas muitas vezes queiram trabalhar numa rádio porque amam música, as estações de rádio são propriedades operadas para ganhar dinheiro” (ROTHENBUHLER, 1985, p.104, tradução nossa) 9. Ou seja, por mais, que sejam espaços para todos os gêneros e gostos musicais, as coisas tem que se pagar de alguma maneira. Com relação a preferência e a diversidade musical, as novas plataformas trabalham estes aspectos numa abrangência maior do que antigos formatos das rádios. Com um acervo que tende ao infinito, em que o ouvinte não vai ter tempo de escutar tudo o que está disponível.
Façamos um parêntese para pensar a temporalidade/duração, tomando a obra de Richard Wagner como medida, cuja influência na linguagem musical ocidental é inquestionável. A título de exemplificação, se não fosse sua obra e a formatação dada a noção de Leitmotiv10, a história da música para o cinema, talvez fosse outra (PEREIRA, 1995). Wagner teve por boa parte de sua vida sua produção custeada pela tradição do mecenato, tendo como patrono o Rei Ludwig II da Baviera. Se Daniel Ek reclama atualmente dos artistas, imagina o que ele não falaria de Wagner, que ficou compondo sua famosa Tetralogia do Anel dos Nibelungos por vinte e seis anos (de 1848 à 1874), resultando em dezesseis horas de música, dividias em quatro óperas. Se parar pra pensar são uns dezesseis álbuns musicais lançados em intervalo de um ou dois anos cada um. Mesmo assim, quantos artistas da atualidade podem dizer que tem dezesseis álbuns depois de vinte e seis anos de carreira? O detalhe da obra de Wagner é que a tetralogia completa estreou somente em 1876, mas a seu contragosto a primeira das óperas, Das Rheingold (O Ouro do Reno), havia sido exibida antes, em 1869. Se não fosse isso, teria ficado todo este tempo sem monetizar. Perceba, que as óperas de Wagner precedem onze anos da invenção do fonógrafo, mas àquela altura, tal invento poderia registrar apenas algum excerto musical de três minutos do conjunto de óperas. Pensando bem, por longos anos a indústria seria incapaz de registar/reproduzir um espetáculo wagneriano conforme a concepção de sua essência; horas a fio, sem interrupções.
Fecha-se o parêntese com a pergunta: como enquadrar peças longas numa playlist? A matemática financeira não bate. Desde que, se voltou o uso de dispositivos de gravação/reprodução do telefone/telégrafo para a indústria fonográfica, somando-se a isso, a capacidade de penetração destes novos adendos culturais na sociedade, o modus operandi musical mudou. Neste sentido, não deve ser coincidência os três minutos de capacidade de armazenamento dos primeiros discos na contribuição para o sucesso comercial e formato das rádios. A tradição do uso de músicas curtas dá espaço para a inserção de comerciais e obras de diferentes artistas, promove a fluidez nas programações, resultando em conteúdos dinâmicos e que capturam a atenção do ouvinte. Esta mesma formula está presente na curadoria das plataformas de streaming. A discrepância do caso Wagner para com a atualidade revela uma coisa: nosso presente tem uma maneira própria de experienciar o tempo que está incrustado na materialidade das mídias.
É como se houvesse na arquitetura temporal do mundo hoje um espraiamento dos modos comunicacionais, fazendo com que também do ponto de vista cotidiano se viva o tempo midiático: o do eterno presente, aquele que dilui a fronteira do presente com o futuro, em que o passado quando emerge não tem espessura e, mais do que isso, passa a ser também incluído no presente. A desrealização do tempo, marca fundamental de nossa arquitetura temporal, é a experiência do tempo midiático que se desliza para o tempo da vida. (BARBOSA, 2019, p.28)
Assim, se não havia o mecenas para bancar, restou criar um novo ecossistema que rendeu a subsistência do mercado. Se por acaso era uma cultura de tecnologias limitadas quanto a duração, restava a estética enquadrar seu tempo a elas. Caso o ouvinte quisesse escutar a música longa do passado, teria que ir ao encontro dela e aprecia-la ao vivo, pois, o disco 78 rpm não comportava este evento. Por isso, a inclinação da Columbia na ocasião do lançamento do LP na divisão de um formato de luxo de maior duração para discos de música erudita, em oposição a discos de menor capacidade e uso prático para divertimento. Espaços e extratos edificados, permitindo a emergência de diversas digressões, como por exemplo, analises e falas acerca da Alta e Baixa cultura Edgar Morin (2007), que claramente tem relação com as materialidades e a aristocracia saudosista fomentada anteriormente no texto. Neste sentido, o disco de luxo ainda era uma tentativa de reprodução do passado recente. Se voltarmos na história, vamos ver que o ano de lançamento do LP é 1948, o mesmo da morte do compositor Richard Strauss, aquele que é considerado o último dos românticos da tradição germânica. E assim falou Zaratustra.
Conclusão: playlist x álbum
Como visto acima, cada temporalidade tem seus meios midiáticos, e eles em si, já possuem as maneiras de experienciar o tempo. Sendo o consumo atual de música atrelado a playlist e as materialidades das plataformas, passa a ser interessante o diálogo dessa nova lógica em relação ao passado. A pesquisadora Anja Hagen escreveu um artigo curioso, no qual propõe entender como se estabelecem as novas coleções musicais nas plataformas digitais a partir do regime das playlists (HAGEN, 2015). Sobretudo, a oposição dos modos de escuta nas mídias, a autoridade do álbum e as maneiras de subvertê-las. A exemplo da mix tape, que tem uma construção/gravação complexa e demorada em relação a praticidade da playlist atual. Ou situações como a facilidade de manipulação e acesso aos conteúdos musicais, que causam estranheza no tradicional amante das mídias físicas, como destaca Patrick Burkart:
A perda de controle do usuário sobre a tecnologia, por si só, atinge o ego do colecionador de música, em que a vida controlada de um usuário dentro do recinto digital parece incomensurável com o usuário que uma vez foi a lojas de discos comprar, vender, negociar e colecionar CDs, LPs e cassetes, que possuíam os direitos de primeiras edições, para construir uma coleção. No final, a distribuição digital tenta suspender o fetichismo da mercadoria, que está no cerne do desejo do colecionador em colecionar. Esse dilema cria um problema básico com a assinatura e os serviços de música com DRM como modelo de negócios. O compartilhamento restrito de música fora de recintos online discretos, reduz a chance dos fãs de música, especialmente ex-colecionadores, identificarem valor nos arquivos de música digital que valham a pena pagar. Dada a obsessão com o controle sobre como fazer escolhas, sobre como tocar música, por que um colecionador escolheria se tornar assinante de um serviço de música que extingue tantos aspectos do controle dos usuários sobre coleções de música? (BURKART, 2008, p.249, tradução nossa) 11.
Veja que é algo intrínseco ao que foi elaborado anteriormente, quanto a limitação e ao acesso. Em algum ponto da história o ato de colecionar esteve ligado a noção da tiragem finita do produto. Parte da decisão na compra de um álbum também tinha relação com os formadores de opinião (gatekeepers). Neste ponto as rádios, revistas e jornais especializados, e mais tarde, canais como a MTV, desempenharam um papel importante em definir o consumo. Além disso, “as grandes gravadoras aprenderam com as independentes, durante os anos heroicos do rock n’roll, que a cooptação de indivíduos-chave nos meios de comunicação (jornalistas, críticos de música, DJ, etc.) aumentaria as chances de retorno dos investimentos em A&R (DEMARCHI, 2011, p.110)”.
No início da era dos LPs vimos que os padrões de consumo foram determinados pela duração das mídias. Com sua popularização à medida que os formatos anteriores foram caindo em desuso, principalmente, nos anos do rock and roll, outros padrões de consumo foram adotados. O alargamento da capacidade das mídias permitiu que músicas longas fossem compostas, em que a produção de muitos discos foi elevada a categoria de obra de prima, nos anos posteriores aos seus lançamentos. Se anteriormente, os artistas tinham um comportamento similar ao da atualidade, fracionando o lançamento dos trabalhos, gravando duas ou três músicas, já que o 78 rpm era limitado, com o LP era diferente, pois haviam quarenta e cinco minutos para serem preenchidos.
Os compositores, por exemplo, podem se esforçar para escrever um hit, mas devem primeiro escrever algo que um produtor e um interprete selecionem para gravar. Os produtores de discos podem querer produzir sucessos, mas a sessão de gravação primeiro deve produzir material aceitável para os executivos encarregados dos orçamentos de gravação, artistas contratados e cronogramas de lançamento. Músicas que não são gravadas, gravações que não são lançadas, lançamentos que não são promovidos agressivamente e gravações que não vão ao ar não podem se tornar sucessos (ROTHENBUHLER, 1985, p.103 & 104, tradução nossa) 12.
O que fez com muitos trabalhos adquirissem uma grande carga conceitual. Veja, que no princípio do uso do LP grava-se música erudita/programática, que em geral tem um motivo e uma ordem para acontecer. Só que, estas já estavam escritas há décadas, senão séculos. Era só selecionar, produzir e gravar. Quando os artistas começaram a compor para essa nova mídia, pela própria imposição material, alguns fatores passaram a ser fundamentais, tais como: ordenar, atentar-se a narrativa entre as faixas, selecionar quais eram melhores para venda, pois estas deveriam vir primeiro, pois não era um suporte fácil para pular as faixas. Além da necessidade de preencher toda a duração do disco.
Já o CD trouxe outra experiência para o ouvinte: o ato de pular uma faixa era mais fácil. Esta é mais uma pista da continuidade do padrão dos três minutos, mesmo que o CD comportasse oitenta deles. Digamos assim, todas as músicas deviam ser “boas” e “vendáveis”, pois a indústria quer que você goste do produto, para comprar outros depois. Se você tiver que pular muitas faixas para chegar até a pretendida, pois não gostou das anteriores, pode ser que não compre outro CD daquele artista. Não à toa, a liberdade de escolha durante a crise da indústria fonográfica com a pirataria e o compartilhamento P2P fizeram sucesso. O ouvinte tinha autonomia nas decisões, pois havia uma descentralização com o crescimento dos home studios e os lançamentos independentes, criando setores e mercados menos dependentes da indústria. “Por alguns anos, como as estações de rádio piratas e gratuitas nas décadas de 1960-1980, a Internet foi realmente capaz de desintermediar o consumo de música: as pessoas estavam consumindo e trocando música fora das “cercas” dos circuitos comerciais de classificação de audiência” (BONINI E GARDINI, 2019, p.2, tradução nossa)13. Tudo era feito no ambiente das redes e nela o ouvinte é tribal, altamente segmentado.
Por exemplo, a forma material de um LP carrega consigo um protocolo distinto para ouvir e para encontrar a personalidade de um determinado artista por meio das informações e uma série deliberadamente ordenada de faixas. No entanto, também com LPs, o público foi capaz de subverter determinadas estruturas musicais em práticas de escuta pessoal e a personalização foi cultivada em práticas de gravação individuais, por exemplo, em fitas caseiras e fitas cassete. No entanto, formatos digitais como CDs e, mais tarde, arquivos MP3 tornaram mais fácil a interrupção das apresentações do “álbum” dos artistas, permitindo que o ouvinte selecione e reordene por capricho (HAGEN, 2015, p.627, tradução nossa)14.
Na plataformização todas estas características estão lá. Só que arregimentadas em torno do algoritmo em listas que são cunhadas de forma autoral/automatizadas, ou na definição de Bonini e Gardini – algo-torial. “Em outras palavras, curadoria em plataformas de streaming de música é um processo de mesclagem que resulta da combinação de atividade humana “aumentada” por algoritmos e atividade não humana projetada, monitorada e editada por humanos” (BONINI E GARDINI, 2019, p.6, tradução nossa)15.Veja como a playlist carrega as regras para vivenciar o tempo dela. Fica em jogo agora a possibilidade de poder pular faixas e as plataformas tentando descobrir o gosto de cada um para reduzir tal prática. Um ecossistema acelerado e que não espanta que os três minutos sejam a regra. A playlist é o gatekeeper da atualidade, organizando o presente e representam o renascimento de um mercado. A plataforma que melhor atender aos anseios do ouvinte, o manterá fiel dentre todas as disponíveis na concorrência, apreendendo sua atenção pelo maior tempo possível. É o produto agindo sobre o produto; informações agindo sob informações; são os rastros de dados deixados pelos ouvintes, virando produtos nas plataformas, em um sistema de retroalimentação.
As máquinas automatizam a criação de playlists, tornando sua produção mais eficiente e aprimoram – como um “exoesqueleto” – as habilidades dos curadores humanos, tornando-os mais rápidos em suas escolhas e acelerando os tempos de produção. […] A curadoria de música na era da plataforma é determinada por essas lógicas mutuamente moldadas. Em vez de contrastar de lógicas editoriais e algorítmicas, devemos, portanto, enquadrar essas lógicas como empilhadas e emaranhadas, ambas moldando os resultados das plataformas (BONINI E GARDINI, 2019, p.6, tradução nossa) 16.
Por fim, porque o álbum x a playlist. As plataformas exigem um ritmo próprio de renovação e produção de conteúdo, intrínsecas a materialidades delas, o que dita o consumo das informações oferecidas. Tudo tem de ser novo a todo o tempo, ou pelo menos parecer. “O sentido efêmero do tempo, que se expressa também na descartabilidade da maioria dos objetos consumidos por esta mesma civilização – objetos substituíveis no ato e na essência –, multiplica-se também na construção simbólico-discursiva dos meios de comunicação” (BARBOSA, 2017, p.21). Os algoritmos tentam dar conta desta automatização, mas precisam de produtos para comercializar o tempo todo. Se a lógica agora é da playlist melhor fazer como na era do 78 rpm. Gravar um lado A e B a cada seis meses e mais vantajoso do que produzir um álbum de dez músicas com uma lógica estabelecida. A volta do EP (extended play) não é de graça. Para que lançar uma ordem conceitual de dez músicas, se o algoritmo das plataformas vai recortá-la em diversas playlists? O que torna “nosso mundo comum computacional, podemos reordená-lo desmontando-o em pequenos pedaços e tornando-o remontável de maneiras diferentes, contextualmente específicas e adotáveis” (PASSOTH, 2020, p.158, tradução nossa)17. Se as plataformas digitais são o novo arquétipo de repositório das memórias musicais, papel que já foi dos cilindros, dos 78 rpm, dos LPs, dos compactos, dos CDs e HDs o ideal é tentar entender as novas regras do mercado para não morrer na praia. Como é contraditório ter mídias na atualidade que dão suporte quase infinito de tempo, mas que devido a aceleração dos tempos, tudo deve ser encurtado, para que os algoritmos percebam como algo vendável e listem como algo a ser ouvido. Irônico? Se comparado ao passado musical, sim.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas Volume 1. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
BARBOSA, Marialva. Tempo, tempo histórico e tempo midiático: interrelações. In: MUSSE, Christina Ferraz; VARGAS, Herom; NICOLAU, Marcos (org.). Comunicação, mídias e temporalidades. Salvador: EDUFBA, 2017. p. 19-36.
BONINI, Tiziano & GANDINI, Alessandro. (2019). “First Week Is Editorial, Second Week Is Algorithmic”: Platform gatekeepers and the platformization of music curation. Social Media + Society, 5(4), 1–11.
BURKART, Patrick. “Trends in Digital Music Archiving.” The Information Society 24.4 (2008): 246–250. Print.
CLASSICFM (2020). Spotify boss blames musicians for lack of earnings, says they should make more music. Matéria escrita Rosie Pentreath. Disponível online em: https://www.classicfm.com/music-news/spotify-boss-blames-musicians-lack-earnings/ acessado em 14/10/2020.
DE MARCHI, L. A destruição criadora da indústria fonográfica brasileira, 1999-2009: dos discos físicos ao comércio digital de música. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Tese de conclusão de doutorado, 2011.
EVERETT, Rogers [1962]. Diffusion of innovations. The Free Press, New York, 4th Edition, 1995.
FELINTO, Erick. Materialidades da comunicação: por um novo lugar da matéria na teoria da comunicação. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 10., 2001, Brasília. Brasília: Universidade de Brasília, 2001.
GROUT, Donald; PALISCA, Claude. História da Música Ocidental. Lisboa: Gradiva, 2007.
HAGEN, A. N. The Playlist Experience: Personal Playlists in Music Streaming Services. Popular Music and Society, v. 38, n. 5, p. 625-645, 2015.
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 2007.
MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
NIEBORG, D. B., & POELL, T. (2018). The platformization of cultural production: Theorizing the contingent cultural commodity. New Media & Society, 20(11), 4275–4292.
PASSOTH, Jahn-H. Music, Recommender Systems and the Techno-Politics of Platforms, Data, and Algorithms. In: MAASEN, Sabine; DICKEL, Sascha; SCHNEIDER, Christoph (org.) TechnoScienceSociety: Technological Reconfigurations of Science and Society. Chapter 9. Springer Nature Switzerland AG 2020.
PEREIRA, M.S. Cinema e ópera: um encontro estético em Wagner. Escola de Comunicações e Arte da Universidade de São Paulo, 1995. Dissertação (Mestrado em Cinema).
PEREIRA, Vinicius Andrade. “Marshall McLuhan, o conceito de determinismo tecnológico e os estudos dos meios de comunicação contemporâneos.” In: Razón y Palabra. V. 52, 2006ª, p. 52. Disponível em: <http://www.unirevista.unisinos.br/_pdf/UNIrev_VAndrade.PDF>.
PREY, Robert. Locating Power in Platformization: Music Streaming Playlists and Curatorial Power. Social Media + Society, April-June 2020: 1–11.
RIAA (2020). Year-end 2020 RIAA revenue statistics. Disponível online em: https://www.riaa.com/wp-content/uploads/2021/02/2020-Year-End-Music-Industry-Revenue-Report.pdf . Acesso em: 03/06/2021.
ROTHENBUHLER, E. W. Programming Decision Making in Popular Music Radio. Communication Research, v. 12, n. 2, p. 209-232, 1985
SHAEFFER, Pierre [1966]. Tratado de los objetos musicales. AlianzaEditorial, S.A. Madrid, 2003.
SHANNON, Claude; WEAVER, Warren. The Mathematical Theory of Communication. The University of Illinois Press: Urbana, 1964.
STERNE, J. The audible past: cultural origins of sound reproduction. Durham; London: Duke University Press, 2003.
Thiago de Almeida Menini é doutorando em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Jornalista de formação pela Faculdade de Comunicação da UFJF, já atuou como produtor cultural e crítico musical. Atualmente, dedica-se a pesquisar as novas tecnologias da informação e os efeitos que essas produzem na escuta contemporânea, principalmente a musical. Trata-se de uma pesquisa que durante a graduação explorou questões acerca da Cultura de Massas e música; e no mestrado, partiu para uma abordagem psicanalítica acerca dos processos de criação e criatividade na história da música. A paixão pela música vem desde cedo no aprendizado do violino, piano e guitarra no Conservatório de Música Haidée França Americano, tendo formado somente em violino. No presente momento atua como violinista no naipe dos primeiros violinos da Orquestra Sinfônica Pró-Música da UFJF e é tecladista da banda de rock progressivo Unconscious.
Esse espaço maroto de apoio e fomento à cultura pode mostrar também a sua marca!
Agora você pode divulgar seus produtos, marca e eventos na Trama em todas as publicações!
No plano de parceira Tramando, você escolhe entre 01 e 04 edições para ficar em destaque na nossa plataforma, ou seja, todas as publicações das edições publicadas vão trazer a sua marca em destaque nesse espaço aqui, logo após cada texto e exposição . Os valores variam de R$25,00 a R$80,00.
Para comprar o seu espaço aqui na Trama é só entrar em contato através do whatsapp: (32) 98457-3839, ou via direct na nossa página do Instagram.