Além do que se vê

Depois de uma longa semana na UTI, Cecília retornou para o quarto e era necessário manter estímulos para que a musculatura correspondesse ao processo de recuperação.  Naquele dia a proposição era uma caminhada pelos corredores do hospital.  Animada, Cecília já dispensava o auxílio do pai temeroso, queria andar sozinha. 

Enquanto caminhava, numa tentativa de criar vínculo e facilitar a atividade, a profissional diz: 

– Olha Cecília!!! Quanta coisa bonita, olha lá o shopping, bairro grande e bonito…” 

Cecília olhou e continuou andando. 

Ao fundo identifiquei a escola dela e apontei:

– olha filha!!! 

_Escola adventistaaaa!!! – gritou animada. 

-Você tem muitos amigos lá? – perguntou a profissional. 

-Não muitos. – Cecília respondeu sucinta. 

Na tentativa de retornar o diálogo, a profissional fala: 

-Desse lado já não é tão bonito, né Cecília? Muita coisa diferente, muita casa…” 

Cecília, com sua inocência, interrompe: 

-Eu acho bonito!!! Parece minha casa, cheia de árvores.” 

Silêncio entre nós. 

Incrustado num dos principais pontos da cidade, o hospital divide duas partes do social: de um lado um bairro mais elitista e do outro um mais popular.  O intuito não é criticar ou julgar a profissional. Até porque, pela sensibilidade de Cecília, me percebi credor da mesma leitura.  Mas, sim, ressaltar como o olhar sensível da Cecília se reconheceu naquele outro espaço e valorizou o verde, que raramente sobrevive em meio a floresta de concreto e aço.  A hostilidade, a exclusão e as violências sociais se fazem na distribuição dos espaços físicos de uma comunidade e de sua (não) valorização.  Como Pereira Passos, meu olhar atribuiu ao concreto o aformoseamento e o contrário ao periférico, coube à Cecília a percepção de que a ocupação periférica, mesmo desordenada, mantinha de alguma forma uma convivência ou manutenção de espaços verdes, como em nossa casa (também periférica).  Trouxe, ainda, a consciência de que preconceitos são estruturais. Ou seja, mesmo sendo periférico e possuindo uma formação crítica, fui absorvido por discursos e ações culturalmente construídas que internalizaram uma visão preconceituosa dos espaços que habito. 

Que consigamos perceber além do que materialmente se vê. 


Iverson Silva é professor de História da Rede Pública, Historiador e Escritor. 


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