Indígenas Warao frequentam a escola em projeto de alfabetização trilíngue

Em Teresina, crianças e adolescentes de 6 a 17 anos são alfabetizados em português, espanhol e Warao, com o apoio de educadores sociais da etnia indígena.

O que é necessário para construir uma vida melhor? Para indígenas Warao que vivem em abrigos na cidade de Teresina, Piauí, a resposta está na ponta de lápis e canetas: educação.

Desde março, 81 estudantes da etnia venezuelana passaram a frequentar três escolas da rede municipal de educação em um projeto de alfabetização trilíngue, que contempla os idiomas português, espanhol e Warao. Nas classes diárias, além dos professores brasileiros, os alunos são acompanhados por 12 educadores sociais Warao, que atuam como tradutores e mediadores.

Legenda: Desde 2016, a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) registra um fluxo crescente de pessoas indígenas vindas da Venezuela para o Brasil – mais de 9,4 mil delas chegaram ao país em busca de proteção internacional.
Foto: © Vanessa Beltrame/ACNUR

Placido Benítez, 49 anos, é um deles. De segunda a sexta-feira, às 6h30 da manhã, Placido coloca o estojo com o violão nas costas e, na frente do abrigo Buenos Aires, embarca com as crianças e adolescentes no ônibus escolar amarelo que os levará para a Escola Municipal do Mocambinho, em um dos bairros mais populosos da cidade.

No colégio, a sala de aula foi adaptada para receber os estudantes, com idades entre 6 e 17 anos, e ornada com ilustrações e palavras nos três idiomas. Em vez das tradicionais fileiras, as carteiras escolares estão dispostas em “U” e, à frente da lousa branca, a professora Larissa Oliveira comanda a turma ao lado de Placido.

“A educação é importante para aprender a defender sua etnia, sua cultura e, assim, servir à sociedade.” – Placido Benítez. 

Enquanto os alunos se acomodam nas cadeiras, Placido saca o violão e começa a cantar em Warao. É o sinal para o início da aula.

Neste dia, todos vão aprender a escrever a palavra “casa” e sua tradução no idioma Warao, “janoko”. Para além das letras e sílabas, vão conversar sobre a simbologia de casa para pessoas que, como o povo Warao, foram forçadas a se deslocar. Como era a casa antes do deslocamento forçado? Como é a casa hoje? Larissa e Placido se revezam nas explicações. Ela ensina os alunos em português e espanhol, enquanto Placido trabalha palavras e conceitos em Warao.

Para a professora Larissa, o aprendizado é uma via de mão dupla, e a comunidade escolar também tem tido ganhos com a presença dos estudantes indígenas.

“Eles têm um desejo de aprender, e os maiores, que já têm uma consciência social maior, têm sonhos bem reais que querem conquistar.” – Larissa Oliveira. 

Árvore dos sonhos

Nas aulas, Gabriel, 17 anos, o mais velho da turma, participa com afinco, cuida dos mais novos nos intervalos e dá bronca nos que estão distraídos. Ele tem planos de ser o aidamo (liderança) de sua comunidade no futuro. “Meu sonho é comprar um terreno e construir uma casa para o meu povo. Eu estudarei muito duro para conseguir isso”, afirma.

As aspirações das crianças estão escritas e desenhadas na parede da sala de aula, em um projeto coletivo chamado de “Árvore dos Sonhos”. Algumas delas expressam sonhos profissionais: ser médico, professor, vigilante, policial.

No entanto, ter “janoko” (casa) é o desejo mais recorrente nas pequenas folhas da árvore. Rosaura, 12 anos, que ainda não escreve, desenhou o seu sonho na pequena folha: uma casinha quadrada com o telhado triangular, acompanhada do sol e de uma árvore. Ela conta que a planta retratada é o buriti, árvore sagrada para o povo Warao.

Placido, por sua vez, quer garantir que os sonhos das meninas e dos meninos se realizem. Na folha que ele depositou no projeto, está escrito “defender os povos indígenas”. “Eu quero leis na parte de educação, de saúde, de moradia, para vivermos em uma casa digna. É para isso que eu quero lutar pelos indígenas Warao”, explica.

No intervalo, às 8h30, as crianças correm para a cantina, onde se servem de pão com ovo e achocolatado. Depois do lanche, satisfeitas, brincam de beisebol, usando as mãos como tacos improvisados, e voltam para a sala de aula para seguir com a lição sobre a casa, que se transforma em muitas outras palavras.

“C” de carro. “A” de avião. “S” de sapo. “A” de amigo. Cada um é convidado à lousa para escrever alguma palavra com o acrônimo. Às 11h30, antes de embarcar novamente no ônibus escolar que os levará de volta aos abrigos, os estudantes almoçam arroz, feijão, macarrão, farofa de carne e melão. É a refeição mais completa do dia para todos, inclusive para Placido.

Neste mês, a Secretaria de Estado da Educação do Piauí contratou Placido e os outros 11 educadores sociais para darem aulas no projeto de Educação de Jovens e Adultos (EJA) Intercultural Warao, também trilíngue, que atenderá 65 indígenas entre 16 e 68 anos. A Secretaria também está reformando um prédio que servirá de sede para a primeira escola indígena do Estado, e que atenderá os indígenas venezuelanos Warao, os parentes brasileiros Guajajara e crianças não indígenas.

“Graças a este projeto, temos possibilidade de seguir em frente, ter um objetivo”, reforça o educador.

Legenda: “Meu sonho é comprar um terreno e construir uma casa para o meu povo. Eu estudarei muito duro para conseguir isso.” – Gabriel, 17 anos.
Foto: © Vanessa Beltrame/ACNUR

Educação popular e indígena

Desde 2016, a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) registra um fluxo crescente de pessoas indígenas vindas da Venezuela para o Brasil – mais de 9,4 mil delas chegaram ao país em busca de proteção internacional. Os grupos étnicos mais representativos são os Warao (67%) e os Pemón (28%), mas também há presença dos Eñepá, Kariña e Wayúu. Quase metade dessa população, ou mais de 4,3 mil, são crianças e adolescentes de 0 a 17 anos.

Em Teresina, a Cáritas Arquidocesana, parceira do ACNUR, trabalha com os indígenas Warao desde 2019, quando os primeiros refugiados e migrantes dessa etnia chegaram ao Piauí. Ao identificar as necessidades dessa população, a organização iniciou o projeto Ciranda Latina, de educação popular e alternativa para as crianças e adolescentes abrigados, oferecendo um primeiro contato com a língua portuguesa e a cultura brasileira.

Uma importante aliada na construção pedagógica do projeto foi a professora Dra. Lucineide Barros, do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Sociedade e Cultura da Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Ela apoiou o início do processo, com foco no acolhimento linguístico dos indígenas e na construção de uma educação popular.

“Do ponto de vista do tipo de conhecimento, a ideia é que não seja uma educação para as pessoas, mas construída com as pessoas. Não de fora para dentro, mas em um contexto de interação, de diálogo.” – Lucineide Barros, UESPI. 

Depois do projeto da Cáritas, a Secretaria Municipal de Educação, apoiada pela Secretaria de Estado de Educação, iniciou o projeto Alfabetização sem Fronteiras, baseado nas experiências de vida das pessoas atendidas, como prevê o método de Paulo Freire. O ACNUR também apoiou o projeto por meio do pagamento de assistência financeira aos 12 educadores sociais nos três primeiros meses.

“As crianças têm uma expectativa muito boa em relação à escola, tanto que os primeiros relatos depois das primeiras experiências escolares disseram que elas estavam querendo escrever mais, ter mais acesso a material de leitura”, completa a professora Lucineide.

Todos os projetos desenvolvidos em Teresina foram construídos em reuniões de escuta ativa com os 12 educadores sociais indígenas Warao, protagonistas de sua própria educação.

Artigo Publicado Originalmente na página da ONU Brasil no dia 25/04/2023


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