15 de outubro de 2015. O calor carioca começa cedo. Logo às sete da manhã, coloquei-me de pé. Havia combinado de curtir a praia com minha tia naquele domingo. Atravessamos a São Clemente, em direção à Casa de Rui Barbosa. Embarcamos no primeiro ônibus para Ipanema. Tomamos um regenerante banho de mar. Uma hora e meia de sol foi mais do que suficiente para enrubescer nossas peles. O dermatologista proibira-lhe sol. O astro-rei já lhe castigara mais do que devia. As numerosas sardas denunciavam os longos anos de exposição solar. Arrumamos tudo e tomamos o caminho de volta para casa.
Caminhamos até o calçadão, sacudimos a areia dos pés e nos vestimos. Atravessamos a Avenida Vieira Souto, a Rua Prudente de Morais e, por último, a Visconde de Pirajá, com destino à Barão da Torre. Linda rua, largos passeios, longos trechos arborizados. Enquanto conversávamos, minha tia apontava o indicador para o majestoso prédio de seus ex-patrões, relembrando os tempos em que trabalhava numa de suas fazendas, no interior de Minas, quando foi chamada – ainda novinha – para morar com eles, num quartinho de empregada da zona sul, na década de 1960. Minha tia sempre faz questão de evocar essa experiência. Mas narra com caneta de ponta grossa e camada espessa de tinta a parte da história da qual mais se orgulha: quando tomou a intrépida decisão de se desvincular dos laços senhoriais e procurar, aleatoriamente, um novo emprego na metrópole. A patroa, após uma rápida saída do apartamento, sem avisar, deixando o filho dormindo no quarto, ao retornar, depara-se com ele “vomitado” na sala: “Como você não viu?! Te coloco para fora daqui, hein!”
Dito e feito: “Se é assim, já saio de uma vez!” Arrumou as trouxas e partiu, sem rumo: voltar para Minas, para a casa em que os pais moravam e trabalhavam, na fazenda dos patrões? Ou arriscar outro emprego naquela grande cidade? A segunda opção lhe parecia a mais provável, embora não soubesse exatamente por onde começar… O fato é que ela se instalou em casa de outros patrões, trabalhou em um hotel internacional, dividiu apartamento com amigos em Ipanema, concluiu os antigos ginásio e científico e conseguiu, a trancos e barrancos, formar-se enfermeira no início dos anos 1980, quando foi aprovada em concurso e nomeada em dois cargos federais em sua área profissional. Funcionária pública, estável e com um salário muito melhor, continuou fazendo aquilo de que sempre gostou: cuidar das pessoas. Foi mais ou menos nessa época que se mudou com uma amiga e um amigo para a Villa Santa Clara, em Botafogo, onde morou até pouco tempo depois de fazermos esse passeio em Ipanema.
Pois bem! Voltemos ao fatídico 15 de outubro de 2015. Tudo parecia muito harmônico e bucólico. O céu azul convidava à contemplação da natureza. A Cidade Maravilhosa, com sua inesgotável exuberância, jamais deixa de encantar os olhos dos transeuntes. Algumas senhoras caminhavam sob as sombras das árvores, moças passeavam com seus cachorros. Uma “ilha de silêncio” numa urbe frenética. Lá no alto do morro, a comunidade de Cantagalo marcava sua presença, contrastando as paredes desnudas de suas casas com as imponentes fachadas dos prédios de Ipanema.
Caminhamos mais um pouco e chegamos à estação General Osório. Decidimos retornar de metrô para Botafogo. Descemos a escada e seguimos na esteira rolante até o guichê. Um garoto negro, de mais ou menos dez anos de idade, pedia esmola: “Uma moedinha, por favor”. Uma senhorinha, que seguia com as mãos repletas de sacola de supermercado, esforçava-se para tirar do bolso o último trocado da feira de domingo e colocar em prática sua caridade diária. Enquanto isso, um senhor ao lado, de camisa polo, com a revista Veja na mão, não hesitava em destilar seu mau-humor: “Vai pedir à Dilma, vagabundo!” Como se não bastasse, ainda recriminava e intimidava os que doavam. Eu e minha tia, estarrecidos, titubeamos: “Damos a esmola ou não damos?” A multidão atrás impacientava-se. Não houve tempo para sequer procurar alguma moeda na bolsa, no bolso ou na carteira. Fomos literalmente arrastados para frente, sem ao menos conseguirmos mirar os olhos perdidos daquele garoto. Parti com aquela voz estúpida e violenta ecoando em minha cabeça. Não tinha a dimensão do quanto aquele eco cresceria, cresceria, cresceria… e se transformaria em estrondosas explosões…
Sérgio Augusto Vicente
Sou doutorando e mestre em História, Cultura e Poder pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Bacharel e licenciado em História pela mesma universidade, com habilitação em Patrimônio Histórico. Dedico-me a estudos na área de história social da cultura no período correspondente à segunda metade do século XIX e às décadas iniciais do século XX, com ênfase nos seguintes temas: associativismo, sociabilidades, trajetórias, história intelectual, história social da literatura, memória, arquivos e coleções bibliográficas e documentais. Atualmente, escrevo sobre a trajetória biográfico-literária do escritor mineiro Belmiro Braga (1872-1937). Sou professor efetivo de História da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora (MG) e, atualmente, atuo na Fundação Museu Mariano Procópio desenvolvendo pesquisa histórica, processamento técnico de acervo e difusão cultural – como curadorias de exposições e mostras, palestras, minicursos, oficinas e produção audiovisual. As exposições “Rememorar o Brasil: a Independência e a construção do Estado-Nação” e “Fios de Memória: a formação das coleções do Museu Mariano Procópio” são meus dois últimos trabalhos curatoriais concluídos, em parceria com outros profissionais das áreas de História e Museologia. Sou colaborador da revista “Trama” desde 2020, na qual publico ensaios, textos históricos, crônicas, contos e poemas.
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Parabéns meu amigo, pela bela construção narrativa, nas também pela sensibilidade para tratar de temas tão áridos como a exploração patronal e política.