Para a História

Sempre quis conhecer o lugar. Parte da História do país, visita obrigatória para quem admira a arte e deseja pisar onde pisaram os responsáveis pelo primeiro grande grito de liberdade deste povo – libertas quae sera tamen. Raspou as economias para usufruir ao máximo de sua estada na cidade. Ficou em uma pousada simples, com o mínimo necessário aos dez dias de viagem. Andou pela cidadezinha, visitou os locais que estudara a distância e lacrimejou diversas vezes ao perceber que pisava onde outrora pisaram personalidades que construíram a nação. Conversou com os moradores, o que sempre fazia, de modo a conhecer a região pelo testemunho direto de quem lá vivia e trabalhava. Esse para ele era o verdadeiro turismo de alguém realmente interessado, que não viaja somente para fotografar e comprar. Admirava, indagava, pesquisava, lia tudo, queria saber quem fazia o artesanato, a origem da comida, a política do lugar, as fofocas regionais, as preferências, os preconceitos, de onde vinha e para onde ia o riacho, a vida na região, e catalogava mentalmente o vocabulário, os dizeres e as pronúncias que captava com ouvidos atentos e especializados.

Quando chegou, chovia bastante, o que, segundo os moradores, era comum em janeiro. No terceiro dia, o sol apareceu, facilitando os passeios de carro ou a pé, especialmente para conhecer as belezas naturais da região – cachoeiras, lagos, rios e montanhas. Passava bastante tempo devorando o céu azul com suas nuvens multiformes e suas cores variando do branco-algodão ao cinza-tempestade. Particularmente, adorava os pássaros – tamanhos, cores e vozes diferentes. Após algum tempo, era como se os sons do lugar fossem uma conversa em uma nova língua que ele passava a dominar; as pessoas não entendiam quando dizia que conversava com os lugares que visitava. Sem falar nas cores. As diversas tonalidades do verde das árvores e da mata ao redor, mesclando-se ao marrom das montanhas, traziam-lhe uma sensação reconfortante de vida, da vida real, autêntica, sem vícios urbanos. Acima de tudo, seu maior gozo era sentir o odor – das árvores, da terra, do mato, da grama, das quedas d’água e dos rios e córregos. Tudo tão diferente da cidade onde morava, com seu fedor impregnante de fumaça de automóvel, comida industrializada e perfumes artificiais. Sem falar das pessoas. Admirava sua simplicidade – diferente da subserviência – e naturalidade. Sabia que muitos se adaptaram àquela vida humilde por falta de melhores opções, por resignação, por não poderem ou não saberem como mudar de vida, e muitos por falta de educação ou de informação. Isso o entristecia, em especial porque sabia que a maior parte do país vivia assim – desesperançada e sem futuro. Ele próprio, com tanta educação e erudição, com tantas oportunidades, relativamente bem-sucedido, encontrava-se desiludido fazia tempo – com a situação do país, com as pessoas ao redor, com a violência e a decadência globais, com a ascensão do extremismo de direita, com o retorno do que já deveria estar enterrado nos livros, com sua própria impotência, com sua falta de coragem, com sua idade já avançada, enfim, com a vida. Com sua vida, o que dava no mesmo. No quinto dia, cruzou um rio largo, barrento devido às últimas chuvas. Ficou bastante tempo sobre a ponte de madeira, admirando, perscrutando as margens. A placa informava que se tratava do Rio das Mortes. Alguém disse que era um rio comprido, que passava por diversos municípios. Por algum motivo, sentiu-se preso àquele rio.

Não era religioso nem acreditava no sobrenatural, mas ainda assim o rio o atraiu de tal maneira que sentiu como que um chamado, para o que não sabia. Voltou para a pousada pensativo, e nos próximos dias o rio não saiu de sua cabeça. Dormia e acordava pensando no rio, sua largura, seu comprimento, suas águas volumosas fluindo sem parar. Para aquele nome, deveria ter clamado por diversas vidas. De maneira lúgubre e sinistra, deduziu que o rio e suas mortes eram parte da cidade e, por isso, parte da História. Algo mais concreto começava a tomar forma em sua mente.

Na véspera da partida, vendeu o carro por um valor irrisório para a dona da pousada. Doou o dinheiro para um abrigo que acolhia os pobres – não sem antes confirmar que o lugar não tinha vínculos com política ou religião.

No último dia, acordou cedo, tomou banho, barbeou-se, vestiu shorts e camiseta e saiu de chinelos em direção ao rio. Estava um dia bonito, ensolarado, propício a um mergulho. Saiu da ponte, desceu por uma pequena trilha e entrou no rio. A água gelada trouxe-lhe um devaneio aleatório – o contraste entre o calor de cima e o frio de baixo. A vida e a morte? Sorriu por dentro. Adentrou mais a fundo a água fria e sentiu as pedras do leito do rio gradativamente mais distantes dos pés. Poucos passos e não teria mais contato com o fundo, com a terra, estaria literalmente sem chão. Parou por alguns instantes e recapitulou passagens da vida, alegres e tristes. Perfilou todos os sonhos, alguns realizados, a maioria não. Reviu a família, os poucos amigos e reviveu situações interessantes. Pensou no trabalho, em sua insatisfação profissional e na incompetência generalizada que o rodeava; parece que esse era um mal universal, fomentado e remunerado pela celebridade digital. Talvez tenha permanecido assim, de pé, imóvel, por mais de uma hora, pelo frio que sentia do quadril para baixo, pela dormência causada pela água fria e pela pele enrugada. Pensou no futuro, no que faria ao voltar para casa.

Sorriu mais uma vez e retomou decididamente a caminhada rio adentro. Sabia precisamente o que fazer. Bastaria uma inspiração profunda, como se buscasse desesperadamente o ar para viver. Sorriu com a ironia – há bastante oxigênio na água. Desceu mais alguns passos e, quando a água já cobria sua cabeça, sorriu pela última vez, sabendo que, de alguma forma, entrava para a história do lugar, quiçá para a História. Inspirou profundamente, e talvez tenha sido feliz.

Enfim.


José M da Silva é professor universitário, revisor e tradutor de 65 anos, que nasceu e mora no Rio de Janeiro, RJ. Possui obras publicadas em antologias de contos e poemas. Membro de algumas associações literárias, publicou o e-book Microcontos da Pandemia, pela Amazon. É amante das letras, da música e das histórias em quadrinhos.

@josemsilvaprof 


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Um comentário

  1. Muito boa a prosa, mas principalmente às referências ao meu estado Diamante, por qual nutro paixão e sempre fez parte de minhas estórias e escritos. Que tenha sido uma boa Morte!!

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