Quando somos estimulados a pensar sobre a máscara, logo, por alguma razão, somos conduzidos ao mundo festivo do carnaval ou do teatro. Na linguagem popular, pode-se associar a palavra “mascarado” ao sujeito que se esconde de si mesmo, o qual não percebe sua real identidade. A máscara é um recurso concreto, colocado no rosto, que oculta a verdadeira face ou caráter da pessoa. Houaiss, por isso, define-a como sinônimo de “falsa aparência”.
A máscara traz em sua essência e em seu significado a duplicidade, uma vez que oculta o rosto que a veste, ao mesmo tempo em que revela uma personagem. A máscara também permite que o usuário veja sem ser visto. Ela possui a magia de comunicar algo por uma aparência que é diferente de quem a veste, deslocando, assim, o verdadeiro para o falso. Para quem assiste, a máscara no corpo promove uma ação de transformação, a magia de ser uma pessoa diferente daquela que a calçou ou a vestiu.
As máscaras sempre estiveram presentes nas mais variadas culturas como um dos artifícios da representação humana. Acredita-se que os homens pré-históricos as utilizavam como recursos teatrais para seus rituais, celebrações e festividades, atendendo à necessidade de saírem de si, de se revelarem outras pessoas, de se disfarçarem, transformando-se em deuses e animais. Elas também vêm sendo utilizadas ao longo da história por grupos teatrais, contadores de estórias e nas manifestações das culturas populares. Elas surgem de diversas formas e de inúmeros materiais para revelar ou ocultar sentimentos, podendo ser usadas social, religiosa ou artisticamente.
Pode-se compreender a máscara como um objeto dual, que oculta e revela, que adultera uma aparência com um fim determinado, para criar um personagem, esconder-se da própria realidade, manipular expressões ou alterar uma nova imagem, um jeito de se ver ou de querer que vejam – seja através da maquiagem ou de efeitos visuais aplicados em softwares ou aplicativos para celulares, seja usando as máscaras teatrais.
Consideramos a máscara um recurso fundamental e específico para o ator que pretende utilizá-la no processo criativo. Pensar o corpo do ator mascarado é uma possibilidade de construir uma narrativa fotográfica e de indicar a máscara como veículo de transformação dentro da construção da cena.
A máscara tanto oculta quanto revela algo que o corpo deseja, mas não pode falar sozinho. Uma máscara possui muitas faces. Ao vesti-la, o usuário experimenta estímulos no seu estado racional, percebendo, deduzindo, manifestando, revelando identidades e personalidades por meio da ação corporal. Elas revelam algo maior do que aparentam, exercendo a função de estender, potencializar, alongar ou amplificar o corpo de quem as usa, revelando seu poder de transformação.
A máscara oculta permite aos atores interpretarem diferentes papéis, adotando distintas personas, comunicando de forma clara e envolvente com o público. A máscara oculta também pode ser uma referência à habilidade do ator de ocultar suas próprias emoções e pensamentos enquanto interpreta um personagem, criando uma separação entre sua vida pessoal e a atuação no palco. No teatro, ela é uma ferramenta essencial à construção de personagens e à entrega de uma performance convincente. Atores treinam técnicas de atuação, voz e movimento corporal para aprimorarem suas habilidades e criarem essa máscara oculta, permitindo que se conectem de forma mais profunda com seus personagens e proporcionando ao público uma experiência mais imersiva.
Uma máscara também persuade para que a pessoa fique em um espaço confortável, só dela, criando uma representação para fora. Estamos quase o tempo todo atuando para o externo e em torno das expectativas que o outro constrói de nós: precisamos ser jovens o suficiente, ter o peso ideal, acompanhar os ditames da moda, o padrão heteronormativo, as expectativas do pós-patriarcado.
Por trás do palco, quando se está só, olha-se para o espelho e conversa-se francamente com o que se vê, escolhendo a aparência que se deseja ter e quem se deseja ser, ao invés de aceitar o que as forças sociais impõem. A outra face, aquela que sobe ao palco, funciona como armadura – ou como cárcere.
Porém, será que, mesmo inseridos em ambientes íntimos a nós, não estamos usando máscaras? Quando não respondemos às expectativas de uma sociedade, provamos o sentimento de desprezo e repulsa. Sociedade essa que, desde muito cedo, desloca uma criança de “bebê” para “menina” ou para “menino” e, nessa nomeação, a menina é “feminilizada” por essa denominação que a introduz no terreno da linguagem e do parentesco, por meio da interpretação de gênero.
Foi a partir dessas reflexões que surgiu o ensaio fotográfico [DIS]face, apresentado como resultado final da disciplina Processos Teóricos e Históricos em Artes Visuais, no Programa de Pós-Graduação em Computação, Comunicação e Artes, da Universidade Federal da Paraíba. Realizado em 11 de julho de 2021, esse ensaio fotográfico contou com a participação do ator Rafael Ângelo, que interpretou a Drag Queen Ágatha Blublam. O objetivo foi abordar o universo da Drag e a representação do corpo ancorado no uso das máscaras teatrais. Por meio de um olhar poético, registrado pelas objetivas, foi possível compreender o fenômeno na manifestação do corpo performático.
Na descrição da travestilidade teatral masculina, Drag significa “Vestido Semelhante a uma Menina”, ou “Vestido como Menina”, o que vai de encontro a todos os ideais e padrões construídos por uma sociedade. E o que destoa, ou se destaca, incomoda, é rejeitado. Ser um homem que se veste como menina e “faz coisas de menina” abala estruturas e causa vaias.
E para confirmar a selvageria que se dirige aos desertores, o grupo dominante faz questão de não considerar parte (ou material) quem se opõe ao sistema, quem tira e rasga a máscara em pleno espetáculo. O sentimento de exclusão e discordância – que normalmente é evitado – obriga-nos a escolher máscaras para viver em grupo. Esse aspecto gira em torno, também, do benefício de instituições que lucram com o aumento das inseguranças e mudanças comportamentais de tempos em tempos. Sempre que a transformação de quem está por trás da máscara ressurge, as forças motoras da sociedade convulsionam e recriam ideais, frustrando e mutilando o curso da vida de todos.
O ser humano é o mais interessado em se libertar das pressões sociais e optar por utilizar a máscara como metamorfose, e não como defesa dele mesmo. O “nós” construído pelo “outro” é que escreve nosso lugar, levando pouco em conta nosso modo particular de ser e existir. A atitude natural será sempre de recusa daquele/daquela que questiona, enfrenta, modifica, de tal modo que ao indivíduo que desconstrói ainda é atribuído os estereótipos da fraqueza e da hediondez, e não a virtude da bravura.
Senhoras e senhores, sejam bem-vindos ao ensaio fotográfico [DIS]face. Após visitar as imagens, fazemos-lhes um convite à seguinte reflexão: “Onde está a sua máscara?”
REFERÊNCIAS
AMARAL, A. M. O ator e seus duplos: máscaras, bonecos e objetos. 2ª edição. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004.
BEAUVOIR, S. A velhice. 2a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.
BUTLER, J. Corpos que importam. São Paulo: Editora, 2020.
LECOQ, J. O corpo poético: uma pedagogia da criação teatral. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2010.
Jucinaldo Pereira
é brasileiro, natural de Patos, na Paraíba e adotou a cidade Pocinhos, no interior do Estado para vivenciar suas primeiras experiências artísticas e foi acolhido na capital paraibana para se profissionalizar. Em Bananeiras, no brejo paraibano, as suas experiências artísticas foram traduzidas em espetáculos encenados por crianças e jovens. Mestre em Computação, Comunicação e Artes pela Universidade Federal da Paraíba, licenciado em Teatro pela mesma universidade, especialista em Arteterapia com ênfase em teatroterapia e professor do ensino básico. Desenvolve pesquisas relacionadas às máscaras teatrais na escola, nas performances do ator/perfomer mascarados e nas relações da tecnologia e encenação. O fotolivro As caras de Juventino Maravilha foi meu último trabalho, que pretendo fazer voar em todas as livrarias do mundo.
Manu Rigoni
é brasileira, vive em Recife e descobriu na fotografia o poder de contar histórias. Mestranda em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, com ênfase na pesquisa Estética e Cultura da Imagem e do Som; especialização em História da Arte; cofundadora do FDF Brasil – diretório exclusivo para fotógrafos de família; co fundadora do Prêmio DocF, que celebra a produção da fotografia documental de família no Brasil e na América Latina. Já foi jurada de concursos nacionais e internacionais de família, como Documentary Family Awards em 2021. Fotografa famílias de todo Brasil e também para seus projetos autorais. Em 2022, teve sua primeira foto exposta no Les Rencontres d’Arles – em Arles, França.
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Linda reflexão, e fantástica exposição. Respondendo ao questionamento final e fundante desse belo trabalho, descobri minhas máscaras na escrita das personagens e heterônimos que criei para me (re)ssignifcar em mundos paralelos, enquanto sigo caminhando e me reinventando em busca de minha Pasárgada.